terça-feira, 29 de janeiro de 2008

"O comportamento ético de muitos, incluindo alguns em cargos de relevo, nem sempre tem correspondido ao modelo ideal de civismo republicano."


Intervenção do Presidente da República na Cerimónia das Comemorações dos 96 anos da Proclamação da República
Lisboa, 5 de Outubro de 2006


Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhor Primeiro Ministro
Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa
Senhora Presidente da Assembleia Municipal
Portugueses

Assinala-se no dia de hoje a proclamação da República, ocorrida precisamente há noventa e seis anos.

Aproximamo-nos, pois, do centenário da instauração do regime republicano. Os poderes públicos irão comemorar essa efeméride com um propósito – um propósito patriótico – de unir os Portugueses em torno dos ideais e do acervo de valores que constituem o legado da Primeira República.

Ao fim de cem anos, a República não é propriedade de ninguém, porque representa um património que a todos pertence. Como tal, as comemorações da sua fundação não devem servir de pretexto para dividir os Portugueses em torno de polémicas velhas de décadas, destituídas de sentido no nosso tempo.

As instituições da sociedade civil poderão assinalar a efeméride através das iniciativas que entenderem por convenientes, mas, como é próprio de um regime democrático e pluralista, não cabe ao Estado patrocinar versões oficiais ou oficiosas da História.

Nos termos da Constituição, o Presidente «representa a República Portuguesa». Nessa qualidade, considero que o aniversário da República é uma data festiva e, como tal, deve ser assinalado com alegria, tranquilidade, elevação e sentido de Estado.

Ao participar nesta cerimónia, julgo, antes de mais, ser meu dever confrontar os Portugueses com a seguinte pergunta: qual o sentido da comemoração que hoje tem lugar em todo o País?

Ao tentar responder a esta interrogação, poderíamos dizer o óbvio: faz sentido assinalar o dia 5 de Outubro porque nessa data se proclamou a República, a forma de governo em que vivemos há quase um século.

Mas, precisamente porque possui quase um século de existência, que significado tem esta instituição centenária para o País? No fundo, o que diz a República ao povo português?

Parece-me evidente que a República e o espírito republicano têm de ser renovados e actualizados, para não perderem o seu valor enquanto forma de regime e padrão de comportamento cívico.

Essa renovação requer, antes de mais, uma nova atitude perante a República, a qual, sem perder de vista a memória do passado, redescubra e actualize todos os dias, no quotidiano dos cidadãos, os valores e os princípios que constituem a matriz essencial do republicanismo.

Uma nova atitude perante a República, da sua dimensão cívica e da sua dimensão ética, é algo que se torna premente no Portugal contemporâneo.

Ao fim de quase um século de República, não existe uma questão de regime entre nós. Por outro lado, decorridos trinta anos sobre a aprovação da Constituição de 1976, as instituições democráticas encontram-se plenamente sedimentadas e consolidadas. A democracia está presente nas instituições e no espírito dos cidadãos. Os Portugueses são democratas, gostam e querem viver em democracia.

Mas os Portugueses desejam viver numa democracia melhor. E o Presidente da República acompanha-os nessa sua legítima aspiração por uma melhor democracia.

Na verdade, é tempo de nos tornarmos mais exigentes perante a democracia que temos. É tempo de nos preocuparmos com a qualidade da nossa democracia.

Ora, é justamente em nome de uma maior qualidade da democracia portuguesa que temos de aprofundar a dimensão ética da cultura republicana e sublinhar a necessidade de transparência das instituições e de moralização da vida pública.

Olhando para a República Portuguesa, prestes a comemorar cem anos de existência, não poderemos deixar de notar que o comportamento ético de muitos dos nossos concidadãos, incluindo alguns daqueles que são chamados a desempenhar cargos de relevo, nem sempre tem correspondido ao modelo ideal de civismo republicano.

A corrupção, devo sublinhá-lo claramente, é uma excepção no comportamento dos nossos agentes políticos. Não deveremos, por isso, abordar este problema com propósitos alarmistas ou populistas.

No entanto, existem sinais que nos obrigam a reflectir seriamente sobre se o combate a esse fenómeno tem sido travado de forma eficaz e satisfatória, seja no plano preventivo da instauração de uma cultura de dever e responsabilidade, seja no plano repressivo da perseguição criminal.

A corrupção tem um potencial corrosivo para a qualidade da democracia que não pode ser menosprezado. Como tal, todos devem ser chamados a travar a batalha da moralização da vida pública, a bem da democracia e a bem da República. São por isso de saudar todas as iniciativas que, de uma forma séria, contribuam para debelar o fenómeno da corrupção.

Uma das principais perversões da corrupção reside na sua capacidade de alastrar como uma mancha que a todos envolve e a todos contamina. Perante a divulgação de um indício de corrupção, de compadrio ou tráfico de influências, é fácil tomar a parte pelo todo, julgando que uma situação isolada reflecte um comportamento generalizado.

Da corrupção decorre outro efeito altamente perverso para a qualidade da democracia: julgando que, de um modo generalizado, o comportamento dos titulares de cargos públicos não é exemplar, os cidadãos deixam de possuir modelos de acção e referenciais éticos nos seus próprios comportamentos.

É usual dizer-se que o exemplo vem de cima. E se de cima não chegarem os melhores exemplos – de seriedade, de integridade, de respeito pelas leis – é fácil os cidadãos deixarem de ter estímulos ou incentivos para pautarem a sua vida pessoal e profissional por padrões éticos de honestidade e de autoexigência.

Deve ainda acrescentar-se que a corrupção tem outro efeito perverso: aprofunda as desigualdades existentes na sociedade. É lamentável que se pense que aqueles que dispõem de poder económico ou de capacidade de influência possuem um acesso privilegiado aos decisores políticos. E, por isso, é necessário existir um relacionamento aberto e transparente, em condições de igualdade, de todos os cidadãos com os poderes públicos.

É igualmente preocupante que os cidadãos, apesar de acreditarem na democracia como o melhor dos regimes, se distanciem e alheiem da gestão da vida pública. Que julguem, de uma forma a que urge pôr cobro, que a condução do destino da coisa pública – da res publica – é algo que lhes não diz respeito, porque entendem que a política é o feudo de alguns, que a utilizam em proveito próprio.

À apatia cívica e ao desinteresse dos cidadãos pela actividade política têm os poderes públicos de responder com uma mudança de atitudes, de modo a reconquistar a confiança dos Portugueses. É essencial que os Portugueses sintam que os seus governantes, aos diversos níveis, vivem para a política, com espírito de serviço e de dedicação à causa pública.

No combate por uma democracia de melhor qualidade devem ser convocados todos os Portugueses, mas esta é uma tarefa que compete em primeira linha aos titulares de cargos públicos.

Trata-se de uma interpelação que percorre todos os níveis do Estado, do poder central às autarquias locais. A transparência da vida pública deve começar precisamente onde o poder do Estado se encontra mais próximo dos cidadãos. Nesse sentido, é necessário chamar a atenção, de uma forma particularmente incisiva, para as especiais responsabilidades que todos os autarcas detêm nesta batalha em prol da restauração da confiança dos cidadãos nas suas instituições.

A instauração de uma ética republicana de serviço público não pode basear-se apenas numa pedagogia de deveres, nem em meros apelos a uma mudança de atitudes. Infelizmente, sempre existirão indivíduos ou situações dos quais estará ausente esta dimensão moral do republicanismo. Daí que para este esforço colectivo deva também ser convocado o poder judicial, pilar fundamental do Estado de direito. Mas para que as instâncias de controlo persigam os prevaricadores de uma forma célere e eficaz, é necessário que o combate à corrupção seja assumido como um esforço a que todos são chamados, nomeadamente pelo sistema de justiça, cuja dignidade e credibilidade devem ser reforçadas perante os Portugueses.

Por outro lado, a influência que nos nossos dias a comunicação social adquiriu implica que os seus profissionais participem igualmente neste esforço de renovação da ética republicana. Exige-se da imprensa uma atitude de responsabilidade, rigor e isenção, pois o papel que ela desempenha na formação da opinião pública não se compadece com formas sensacionalistas ou populistas de tratamento da informação nem, menos ainda, com a divulgação de factos ou notícias sem qualquer correspondência com a realidade.

Neste dia 5 de Outubro, a República deve ser comemorada. Mas para que essa comemoração se converta numa festa onde todos os Portugueses participem devemos mudar de atitude e de mentalidade, tendo presente que a República é regra de vida, sentido de dever e modelo de comportamento.

Celebremos a República! Mas, acima de tudo, celebremos a República por aquilo que a República de nós exige.

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