domingo, 12 de agosto de 2007

Um Consorte com sorte... o marido da autarca adquirira, entre 1994 e 1998, «pelo menos 27 prédios rústicos e alguns prédios urbanos»















Investigação em autarquias

Há 56 investigações em curso, envolvendo câmaras municipais. Vinte autarcas foram constituídos arguidos em processos de corrupção, peculato, tráfico de influências e falsificação de documentos. A campanha eleitoral está a chegar e, com ela, novas suspeitas de crime

Paulo Pena / VISÃO nº 638 26 Mai. 2005

Tal como AnakinSkywalker , o popular herói-vilão , da saga Guerra das Estrelas , também os autarcas portugueses se deixam tentar pelo «lado negro». A julgar pelo volume de investigações em curso, no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), perto de 20% dos municípios e 10% dos autarcas, num universo de 308 câmaras, estão a contas com a Justiça. E estes são apenas os casos que correm no organismo de topo da investigação criminal. Alguns são nomes sonantes, como Isaltino Morais e Valentim Loureiro (PSD), ou Nuno Cardoso e Fátima Felgueiras (PS), os quais têm provocado a tensão que se conhece nos aparelhos dos maiores partidos. Outros são meros «filhos da terra», ilustres desconhecidos da política nacional.

O número pode subir até às 300 investigações/processos sobre a participação de autarcas em irregularidades, se tivermos em conta o leque de organismos com competências de fiscalização do poder local. Jorge Coelho, coordenador autárquico do PS, admite que «há muitos casos» sob investigação, a crer no que lê nos jornais. «Não há praticamente dia nenhum em que não surjam novos casos. Mas são de natureza muito diversa», sublinha à VISÃO.

De facto, a esta luz, a árvore confunde-se mesmo com a floresta. De Vila Real de Santo António, no Algarve, a Vila Verde, no Minho, raros são os partidos e os distritos imunes. Em ano de autárquicas, os responsáveis da PJ temem que a epidemia alastre, descontrolada. «Não podemos ser ingénuos. Até ao final do Verão, vamos ser inundados com denúncias contra autarcas», advertiu Rosário Teixeira, especialista em crimes económicos, num colóquio recente. Aquele procurador no DCIAP, que é responsável pela investigação do caso Portucale-Nobre Guedes, lança, no entanto, um aviso: «O MP não pode ser usado para fretes políticos.»

A menos de cinco meses das eleições autárquicas, a agitação causada por estas investigações faz-se sentir. Desde logo, com a ameaça de candidaturas «independentes» (como em Gondomar e Oeiras), após a decisão tomada por Marques Mendes de vedar as listas do PSD a dois dos seus mais notórios investigados.


PJ na casa do candidato

Diferente é a posição do PS. O único caso que subiu à direcção nacional é o de Matosinhos, pelas conhecidas razões da eterna disputa Narciso-Seabra . Todos os outros foram tratados em sede concelhia. As únicas excepções verificar-se-iam, em tese, se houvesse candidatos pronunciados por crimes, «por um juiz». Este quadro surgiu após o caso de Fátima Felgueiras, que já era alvo de uma investigação sobre o alegado «saco azul» da autarquia, quando o partido a decidiu apoiar, em 2001.

Neste momento, é a situação do presidente da federação da Área Urbana de Lisboa, e autarca da Amadora, Joaquim Raposo, a que concentra as atenções.

Segundo uma fonte do Ministério Público, recaem sobre a gestão autárquica «suspeitas de ilegalidade administrativa, nomeadamente em loteamentos urbanísticos». Joaquim Raposo garante-nos que não é «arguido», nem foi chamado a prestar declarações, nesta investigação, «além da normal colaboração com a Justiça que me foi solicitada». E a comissão política concelhia já aprovou a sua recandidatura a um terceiro mandato na Amadora, «o último», sublinha o autarca.

Este caso teve um desenvolvimento inesperado, em Outubro de 2004, quando a autarquia foi alvo de uma extensa operação de buscas, coordenada pelo DCIAP. Várias dezenas de inspectores da Judiciária apreenderam documentos (referentes a processos de licenciamento, contas bancárias) e material informático, no âmbito de um inquérito-crime por suspeitas de tráfico de influência, corrupção e peculato. Além da Câmara, também a residência de Raposo e a sede de um dos maiores empreiteiros da área metropolitana de Lisboa, José da Conceição Guilherme, foram alvo de buscas.

Um antigo vereador, Virgílio Sobral de Sousa, denunciara, em 1993, antes de Raposo conquistar a autarquia, um esquema de corrupção, para alegado financiamento dos dois maiores partidos, PS e PSD. Segundo o ex-vereador, funcionaria, na Câmara, um sistema de «comissões» cobradas a empreiteiros para o licenciamento de obras.


Um marido com sorte

Em Baião, a investigação prolonga-se há oito anos. Em 1997, a autarquia, presidida por Emília Silva, do PSD, lançou um Plano de Urbanização de 80 hectares na vila. Um ano depois, a área de expansão passou para 220 hectares. Nessa parcela, estavam terras das Reservas Agrícola e Ecológica Nacionais. Com a aprovação do plano, passaram a ser terrenos aptos para a construção

Entretanto, a PGR apurou que o marido da autarca adquirira, entre 1994 e 1998, «pelo menos 27 prédios rústicos e alguns prédios urbanos», cerca de 60 mil metros quadrados dos quais na zona abrangida pelo Plano de Urbanização.

A IGAT concluiu, em 2001, pela existência de indícios de «comportamentos puníveis pela lei penal» e factos sob a alçada do Tribunal de Contas, como sejam nomeações para o quadro de pessoal, sem concurso, ou «progressão em carreiras verticais, sem concurso»; várias nulidades em despachos de licenciamento de obras; «facturas e ordens de pagamento» que «não correspondem a trabalhos efectivamente realizados»; uma obra, por ajuste directo, que aparece descrita, nas contas da Câmara, com três valores diferentes. Entre os responsáveis autárquicos e muitos agentes locais (empreiteiros, prestadores de serviços) somam-se as coincidências, na filiação laranja.


A prática da extorsão

Um processo judicial representa, geralmente, uma mancha que, dificilmente, se apaga do currículo de um candidato autárquico. E há processos muito diferentes entre si. Jacinta Ricardo, ex-autarca do Montijo, da CDU, e Avelino Ferreira Torres, do CDS-PP, foram ambos condenados por peculato (embora o ainda presidente da Câmara do Marco de Canaveses tenha recorrido da sentença). Mas o processo movido contra Jacinta Ricardo deveu-se à retenção ilícita dos descontos fiscais dos trabalhadores camarários e destinou-se a pagar-lhes uma parte dos salários, que, por dificuldades de tesouraria, o município não conseguiu suportar. Já o «peculato» de Ferreira Torres teve, segundo a sentença ditada pelo tribunal, fins menos altruístas: o autarca utilizou meios camarários para ajudar à construção da sua residência privada. Numa coisa, ambos se assemelham: o uso de expedientes para «contornar» a lei.

É por estas e por outras que a população está convencida de que as autarquias não são geridas dentro da legalidade. Em 2003, uma sondagem dava conta de que cerca de 80% dos portugueses acreditam que a corrupção nas autarquias é uma realidade «generalizada».

O fiscalista Saldanha Sanches, numa entrevista ao Diário de Notícias , carregou as tintas: «O número de autarcas que exigem ‘ luvas’ para instalar empresas é assustador.» Não esperou muito pela «indignação» dos autarcas, comandados pela voz de Fernando Ruas, presidente da Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP) e da Câmara de Viseu (PSD). Choveram ameaças de processos por difamação. Houve mesmo uma circular da ANMP que «convidava» todas as estruturas autárquicas a «notificar pessoalmente» o autor da frase. Apenas um autarca o processou – Manuel Frexes , do Fundão.

Saldanha Sanches foi, recentemente, convidado por uma associação do sector da construção civil, a AECOPS, para discutir o problema do financiamento das autarquias. Ali ouviu o que a maioria dos empreiteiros não diz em público. Nomeadamente que a extorsão continua a existir e que os «sacos azuis» são uma realidade. O fiscalista lança um repto: «Há um excesso de medo, neste país. Era bom que as bocas se abrissem, que as pessoas não se resignassem, que não ficassem caladas.»

» Poucas condenações

Estes são os autarcas a quem foram aplicadas sanções judiciais

Abílio Curto – PS, Guarda. Por fraude.

António Cerqueira – CDS/PP, Vila Verde. Por peculato, abuso de poder e falsificação de documentos.

Avelino Ferreira Torres – CDS/PP, Marco de Canaveses. Por peculato de uso.

Edite Estrela – PS, Sintra. Por abuso de poder e quebra do dever de isenção.

João Rocha – PSD, Vagos. Por corrupção passiva, burla agravada, prevaricação e furto de documentos.

Luís Monterroso – PS, Nazaré. Por falsificação de documentos e burla agravada.

José Custódio – PS, Lourinhã. Por burla agravada.

Mário Pedra – PSD, Valença. Por corrupção passiva e falsificação de documentos.

Jacinta Ricardo – CDU, Montijo. Por peculato de uso.

João Luís Semedo – PS, Fronteira. Por burla agravada e falsificação de documentos.

Luís Gabriel Rodrigues – PSD, Santa Cruz, Madeira. Por burla qualificada, peculato e falsificação de documentos.

Patacão Rodrigues – CDU, Vila Viçosa. Por fraude.


Um mistério madeirense

Mas o silêncio é a alma do negócio. A VISÃO tentou ouvir o presidente da AECOPS, Joaquim Fortunato, mas este manifestou-se indisponível. Sob anonimato, alguns responsáveis do sector da construção admitem a «falta de transparência» que reina no mundo dos licenciamentos autárquicos.

A própria AECOPS pode ilustrar o panorama: ainda no mandato de Krus Abecassis (que, recorde-se, terminou em 1989), a associação comprou um terreno na zona de Sete Rios, em Lisboa. O terreno está lá. Ma a sede projectada aguarda autorização camarária. Imagine-se este exemplo, protagonizado por um pequeno construtor, endividado junto da banca. Estaria a pagar juros há quase 20 anos. Assim nasce a tentação de desembolsar as ditas ‘ luvas’ para «desbloquear a situação».

«Se um funcionário autárquico, que ganha 1 500 euros por mês, tem nas mãos a possibilidade de assinar uma autorização que gera milhões de mais-valias, há um risco muito grande», refere à VISÃO um membro da AECOPS. Tornar o mercado «transparente» é o desígnio dos construtores, até porque, na actual situação, «uns conseguem aprovar projectos e outros não...» E, na ponta da língua dos construtores, está um estranho mistério. Quem conseguiu o maior valor de adjudicações de obras públicas, em Portugal, em 2003? A empresa Avelino, Farinha e Agrela, sediada no parque industrial de Câmara de Lobos, Madeira, que só trabalha naquela Região Autónoma e que, por enquanto, está a anos-luz da facturação dos «tubarões» do sector, como a Teixeira e Duarte, a Soares da Costa ou a Somague .

Transparência foi, também, o que motivou a Associação dos Industriais da Construção e Obras Públicas (AICCOPN) a revelar a lista das câmaras, a norte do Mondego, que devem dinheiro às construtoras. O primeiro relatório foi tornado público (e, para que conste, tinha à cabeça Aveiro, que demorava, em média, 23 meses para pagar uma factura, e Ovar, que chegava aos 20 meses). Mas o segundo já não viu a luz do dia. «Decidimos que não o faríamos porque, aquando da divulgação dos resultados do primeiro inquérito, alguns dos nossos associados foram facilmente identificados por câmaras municipais e foram, por isso, pressionados», afirmou Rui Viana, presidente da AICCOPN, ao Jornal de Negócios . Porquê? «Vamos ter este ano eleições autárquicas e do que precisamos é de obras», rematou aquele responsável.


Legislação ‘ suigeneris’

A lei dos licenciamentos, a única na Europa que permite o loteamento privado dos terrenos, data de 1965 e é um resquício do salazarismo. Um importante resquício que 31 anos de «poder autárquico democrático» e vários governos cheios de boas intenções não quiseram, ou não souberam, alterar. O programa do actual Governo estipula, antes, outra mudança consensual: a alteração da Lei das Finanças Locais, que, segundo alguns especialistas, está na origem do boom de construção, ao indexar aos licenciamentos a principal fonte de receitas dos municípios. Nesse documento, diz-se, preto no branco, que «esta reforma incluirá as modificações necessárias a tomar os municípios menos dependentes das receitas oriundas da construção civil, sem afectar os actuais níveis globais de financiamento, bem como a receita pública». Em 2007, promete o Governo, estará pronta a nova lei.

Entretanto, a reforma dos impostos municipais sobre transacções de imóveis (IMT) e sobre imóveis (IMI) pode introduzir modificações, neste mercado especulativo. Leonor Coutinho, ex-secretária de Estado da Habitação, do PS, acredita que sim: «O caminho correcto é esse: penalizar mais quem detém imóveis vazios e menos quem os transacciona», disse à VISÃO.

Se assim for, o case-study que constitui o imobiliário português poderia ganhar um padrão mais... europeu. E, talvez, os planos directores municipais, o meio por excelência de ordenar o território, deixassem de prever áreas de construção de habitações para mais 40 milhões de portugueses, em plena recessão demográfica. Reveladora é a alcunha que a magistrada Maria José Morgado, especialista em crime económico, deu a estes planos: «pastilha elástica». Tal é a sua maleabilidade perante os interesses.

Entre planos de ordenamento tipo- chiclete e os grandes lucros do negócio da construção, os autarcas lá vão despachando licenciamentos, construções, betão. Assim, os cofres das autarquias recebem dinheiro vivo para cumprir os programas eleitorais e, claro, preparar a reeleição. Com boas intenções, ou sem elas, uma parte significativa do poder local vai cedendo ao «lado negro». [# FimNoticia ]

Sem comentários:

Arquivo do blogue

Acerca de mim

Neste espaço surgirão artigos e notícias de fundo, pautadas por um propósito: o respeito pela Lei, a luta contra a escuridão. O âmbito e as preocupações serão globais. A intervenção pretende ser local. Por isso, muito se dirá sobre outras partes, outros problemas e preocupações. Contudo, parte mais significativa dos temas terá muito a ver com a Moita, e a vida pública nesta terra. A razão é uma: a origem deste Blog prende-se com a resistência das gentes da Várzea da Moita contra os desmandos do Projecto de Revisão do PDM e contra as tropelias do Processo da sua Revisão, de 1996 até ao presente (2008...) Para nos contactar, escreva para varzeamoita@gmail.com