quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Na representação alegórica do bom governo, prósperos cidadãos comercializam e dançam pelas ruas. Além dos muros da cidade, há colheita num verde campo






Ambrogio Lorenzetti (c. 1290 - c. 1348). Alegoria do Bom Governo (c. 1337-1340). Afresco, 296 x 1398 cm. Siena, Palazzo Pubblico, Sala dei Nove.

A Alegoria do Bom Governo

No primeiro afresco, a Alegoria do Bom Governo (figura 1) Lorenzetti coloca o rei virtuoso à direita do observador e o representa como um velho barbudo. Vestido em preto-e-branco (as cores de Siena), ele simboliza tanto a cidade de Siena quanto o bem-estar público (WALTHER: 1996, 40). O monarca porta um escudo, representação do universo e da própria fé cristã (CHEVALIER: 1995, 387). O Bom Governo ainda segura em sua mão direita um cetro da justiça — a justiça pensada neste caso pela comuna é fundamentalmente a ordenação de uma tributação justa, que pese proporcionalmente aos recursos dos citadinos (LE GOFF: 1988, 102). A imagem do Bom Governo imita o governo do rei ou do príncipe, embora num contexto diferente: ele simboliza sobretudo um sábio, o rei-intelectual de John of Salisbury e Ramon Llull. Trata-se de uma figura imperial: Georges Duby viu nele os traços de Deus Pai, Salomão e Marco Aurélio, imperador romano (121-180 d.C.) (DUBY: 1988, 107).

A referência de Duby ao imperador Marco Aurélio se explica pelo fato dele ter sido um modelo quase ideal de governante aos olhos dos medievos, um julgamento influenciado pelo registro de suas qualidades pessoais — apesar de, na prática, ter perseguido os cristãos (numa continuidade da política seguida por Trajano [97-117] e confirmada por Adriano [117-138]) e seu reinado ter sido marcado por catástrofes e guerras (contra partos, quados, marcomanos e germanos). Filósofo estóico, Marco Aurélio deixou um livro de Pensamentos em grego e correspondência em latim com o mestre, o retórico Frontão (c.100-167) (GRIMAL: 1993, 307).

Acima do Bom Governo, três anjos coroados. Pairando acima da cabeça do imperador, um anjo avermelhado, com um estranho semblante e vestes transparentes. Ele simboliza a Caritas — mas esta representação pode referir-se também ao Amor patriae (“...segundo a definição comum em 1300: Amor patriae in radice Charitatis fundatur [O Amor à Pátria funda-se na raiz da Caridade] KANTOROWICZ: 1998, 84). Este anjo vermelho está rodeado por outros dois. Um, com feições masculinas, e portando uma cruz. Outro, feminino, com longas tranças douradas, Fides e Spes — fé e esperança (KANTOROWICZ: 1998, 84).

O lugar central dado à Caritas significa a importância política dada à essa virtude no século XIII, mas como uma caritas publica (GUGLIELMI: 1998, 123). Ao redor da cabeça do Bom Governo, quatro letras: C.S.C.C.V., possivelmente Comune Senarum cum Civilibus Virtutibus (GUGLIELMI: 1998, 124). Estas virtudes morais permitem a existência do corpo místico cívico. Abaixo, a seus pés, Rômulo e Remo (representados quase como anjos “pré-barrocos”) sendo amamentados pela loba-mãe, simbolizando a fundação da cidade de Siena por Roma, a eterna e imperial Roma, modelo político de todos os modelos monárquicos e imperiais.

Para o bom funcionamento da vida urbana, o Bom Governo de Lorenzetti separa os bons dos maus: à sua esquerda, abaixo, os inimigos da comuna, agitadores e revoltados, todos barbados, acorrentados e vigiados por soldados fortemente armados.

Na parte inferior do afresco, à direita do Bom Governo, o corpo de 24 conselheiros, chefes das casas notáveis da cidade. Eles estão unidos, em assembléia, segurando uma longa corda (o laço de amizade), que sai dos dois pratos da balança da Justiça e que passa para as suas mãos através da Concórdia (sentada à esquerda do afresco, abaixo da Justiça) — trata-se, evidentemente, de uma trilogia hierarquizada: do céu à terra, a sabedoria, a justiça e a concórdia, uma como consequência da outra. A Concórdia, além de segurar a corda da amizade, apóia sua mão direita sobre uma mesa: supõe-se que essa banca limitará as rusgas existentes entre os cidadãos, igualando-os como membros da comunidade citadina (GUGLIELMI: 1998, 123).

Esta assembléia de notáveis (Conselho dos 24) é composta de homens de todas as idades, jovens, velhos, ricamente vestidos. Repare que todos são leigos: estes burgueses conversam e observam, alguns com um olhar ameaçador, outros contemplativos, observando as virtudes que rodeiam o Bom Governo. Considera-se, por suas expressões faciais, que são conselheiros da época retratados (DONATO: 1995, 29); Lorenzetti antecipa quase em um século a arte do retrato (para o surgimento da arte do retrato, ver SCHNEIDER: 1997). Esta assembléia de notáveis mostra que, definitivamente, este afresco não possui o “ar religioso” comumente encontrado nas imagens medievais. O poder está se laicizando, a arte o segue. É o primeiro esplendor da pintura profana (DUBY: 1998, 95 e 101). São afrescos profanos. A política está aqui livre da liturgia (DUBY: 1979, 263).

Esta dessacralização indica um ressentimento antigo: desde as lutas entre o Frederico II (1194-1250) e o papado (DUFFY: 1998, 115-117), Siena apoiava o Império (ao contrário de Florença, sua rival, papista). Após a vitória de Manfredo, rei da Sicília (nos anos 1258-1266, Manfredo era filho ilegítimo de Frederico II), contra as forças papais na batalha de Montaperto (1260) — na verdade uma vitória de Siena sobre Florença —, o papa lançou um interdito sobre a cidade, levando muitos bancos sienenses à falência. O golpe definitivo viria em 1270: Carlos de Anjou incluiu Siena na Liga dos Guelfos (papal). A partir daí, Siena passou gradativamente a ser suplantada por Florença (BOWSKY: 1967, 01-17). Kantorowicz percebeu neste primeiro afresco de Lorenzetti a visão do advogado medieval sobre a Justiça (KANTOROWICZ: 1998, 84), um dos pilares que estrutura o conceito de monarquia medieval e distingüe o Bom governo do tirano.

Sentadas ao lado do Bom Governo estão as seis virtudes, representadas como rainhas coroadas. Elas apóiam o imperador. À sua esquerda, a Magnanimidade, a Temperança (com uma ampulheta) e a Justiça (com uma espada numa das mãos, uma coroa e uma cabeça cortada no colo). À sua direita, de branco, a Paz, segurando um ramo de oliveira, descansando, tranqüilamente ociosa e recostada numa almofada, com outra nos seus pés — ela é o motivo final da concepção política medieval. A seu lado, a Fortaleza, com um cetro nas mãos e um grande escudo protetor, e a Prudência, mais velha, com sulcos na face, apontando para a coroa em seu colo. A Prudência guarda o trono. Todas as virtudes estão protegidas por cavaleiros armados com lanças.

Na extrema esquerda de quem observa o afresco, noutro trono, ricamente adornado, está a Justiça. Ela auxilia o Bom Governo. Suas mãos estão nos pratos da balança: ela julga os infratores, auxiliada por duas figuras angelicais. À sua direita, o anjo corta a cabeça de um homem, sendo simultaneamente reverenciado por outro, com um ramo de oliveira nas mãos. Ambos largaram suas espadas no chão. À sua esquerda, o anjo presenteia dois homens, com uma vara e um livro. Estas figuras angelicais representam a justiça distributiva e commutativa (GUGLIELMI: 1998, 123). Pois a Justiça é justa porque reparte equitativamente os bens do mundo (NORMAN: 1995).

Ela é justa porque também tem a Sabedoria (sapientia) acima de sua cabeça para auxiliá-la. É representada com asas, dos Céus, segurando um livro. A Sabedoria guia a Justiça, que sai de sua cabeça — uma tradição manuscrita artística coloca a Árvore das virtudes também saindo da cabeça de Ramon Llull, exatamente como essa balança da Justiça de Lorenzetti (RAMON LLULL. Arbre de filosofia desiderat, ORL, vol. XVII, 1933, 400).

Na parte inferior do afresco (que não aparece na figura), um poema explica o sentido da obra para o visitante do Palácio Comunal: Onde reina esta santa virtude (a justiça) a pluralidade das almas é induzida à unidade, as que, assim reunidas, dão-se ao bem comum por senhor. O sentido de bem público deve-se antepor ao do bem privado. Em geral, os teorizadores do início do século XIV seguiam seus predecessores do século XIII, pois fundamentavam-se na teoria do bem comum, que, por sua vez, deveria expressa-se na vida cotidiana através da prática da caridade, a caritas publica.

Por exemplo, para Ptolomeu de Lucca, o amor à pátria possuía sua origem na caridade, no sentido de antepor o bem público ao bem privado. Vários juristas acreditavam que quem morresse pela pátria se sacrificaria por seus irmãos, expressando então a caritas publica (GUGLIELMI: 1998, 123).

Efeitos do Bom Governo e Efeitos do Mau Governo.

Ambas refletem uma paisagem realista da Siena da época. Na representação alegórica do bom governo, prósperos cidadãos estão praticando o comércio e dançando pelas ruas. Além dos muros da cidade, há um verde campo onde acontece a colheita. Na alegoria do mau governo, a crise é extensa e cidadão doentes vagueiam por uma cidade em ruínas. O campo sofre de seca.

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