Ensaio em arquitectura.pt
Urbanismo e corrupção
QUEM ACOMPANHA OS NOTICIÁRIOS EM ESPANHA sabe que a corrupção associada aos abusos urbanísticos está na ordem do dia. Lá como cá, as transformações do território têm uma génese muito semelhante.
Então por que é que não vemos em Portugal políticos, técnicos e promotores a braços com a justiça por razões ligadas ao urbanismo, como lá sucede?
A resposta leva- -nos longe.
Uma das grandes diferenças entre Portugal e os restantes países ocidentais, incluindo a Espanha, reside no facto de a apropriação das mais-valias urbanísticas ser, entre nós, por princípio, privada, ao contrário do que nos outros países sucede.
Há muitas variações sobre a percentagem que é pública, mas só aqui é que se aceita que ela seja cem por cento privada.
A pouca recuperação pública que há é póstuma e por via fiscal.
Os planos demoram anos a fazer e alterá-los pelas vias normais também. Sucedem-se os expedientes de suspensão dos PDM em vigor para aprovar alterações importantes, ou de invenção de procedimentos excepcionais para «despachar» processos complexos, muitas vezes sem sequer garantir a obrigatoriedade da discussão pública.
Vale a pena lembrar que o que rende milhões não é tanto, como vulgarmente se pensa, a construção civil, que é a fase final e visível do processo, mas sim a transformação de um solo rústico em urbano ou urbanizável, ou o aumento dos índices de ocupação muito para lá do inicialmente autorizado.
Em apenas 15 anos, o «território artificializado», que inclui o tecido urbano, os transportes, os grandes equipamentos industriais e comerciais e as áreas em construção, cresceu 42,2% em Portugal continental, num total de cerca de 70 mil hectares. O aumento fez-se à custa dos outros usos: perderam-se 21 mil hectares de floresta, 33 mil de solo agrícola, 12 mil de solos agrícolas com áreas naturais e 4 mil de vegetação natural.
Os números são impressionantes e constam do livro Alterações da ocupação do solo em Portugal Continental: 1985-2000, de Mário Caetano, Hugo Carrão e Marco Painho.
Se procurarmos detalhar os 70 mil hectares deste novo «território artificializado», verificamos que a maior fatia (55 mil hectares) foi para: «tecido urbano descontínuo», «áreas em construção» e «indústria, comércio e equipamentos gerais».
Ou seja, estamos a depredar território ecologicamente fértil para o transformar, nem sequer em cidade, mas em novos espaços desconexos, descontínuos, dominados por vias rápidas, rotundas, centros comerciais, expansões urbanas de baixíssima qualidade e instalações industriais mais ou menos deslocalizáveis.
No meio de tudo isto, os espaços verdes dentro das cidades não crescem. A explicação é muito simples: não dão dinheiro a ninguém.
A multiplicação de valor que estas transformações proporcionam resulta de autorizações camarárias ou administrativas.
Um hectare de floresta ou solo natural pode valer mil vezes mais do dia para a noite, se for considerado «solo urbanizável».
É este o grande poder das autarquias, dos directores de urbanismo, das entidades públicas.
É aqui que tem de ser feito um grande esforço para combater promiscuidades, melhorar a lei e aumentar o escrutínio democrático e mediático.
Bem sei que o solo não pode ser estático.
Mas o urbanismo não é uma actividade «neutra» ou meramente técnica.
Basta de angelismo.
O solo urbanizável é hoje um dos principais alvos do capital circulante à escala global, pelas elevadas taxas de rentabilidade que permite.
É também por aqui que tem de passar o combate à corrupção.
Uma forma de corrupção que se faz muitas vezes pela calada, no sossego dos gabinetes, sem escândalos mediáticos e sem conhecimento do público.
Só quando tudo aparece construído (o que pode levar anos ou décadas) é que os cidadãos percebem que algo está mal. Mas nessa altura os erros são irrecuperáveis e os seus beneficiários já deram à sola...
Sem comentários:
Enviar um comentário