Na foto, o Arquitecto Joaquim Jordão com o seu Neto, de seu nome Guilherme
O Arquitecto Joaquim Jordão, de Amarante, apresentou à Conferência o tema “Pregação sobre os usos e abusos do território”. Na impossibilidade de última hora de se deslocar à Moita, a sua oração foi apresentada por um dos membros da organização.
Pregação sobre os usos e abusos do território
“Naquele tempo inicial, o Criador, quando lhes entregou o planeta, não tinha previsto que os homens instituíssem a apropriação privada do solo.(...) Mais tarde, um dos Seus legisladores, para penalizar esse comportamento, inscreveu-o na tábua do pecado da ganância.(...) Debalde, porém...”
(Evangelhos Imaginados, Revistos e Anotados – Cap.X, Reforma da Lei dos Solos)
“Salvo excepções cada vez mais raras, no nosso país a materialização do urbanismo no terreno está regra geral sujeita ao livre arbítrio dos particulares, às suas iniciativas casuísticas, aleatoriamente programadas em função dos interesses e oportunidades particulares - que não do interesse público.
Por isso, o crescimento dos aglomerados resulta inconsistente, errático e irregular, descontínuo no espaço e no tempo.
Por isso é absurdo o número incrível de novos fogos excedentários, extraordinário o número de edifícios abandonados e em ruínas, incontável o número de construções não licenciadas, enorme a extensão de infra-estruturas sub-aproveitadas.
Por isso cresce imparável o fenómeno das periferias – grandes, médias e pequenas periferias - com todo o cortejo de fenómenos de marginalização, discriminação e injustiça.
Desenvolveu-se, generalizou-se e consolidou-se por todo o país, e no próprio aparelho de Estado, um complexo e poderoso modelo de operação sobre o território, em que o interesse privado é definitivamente o líder proactivo e o interesse público é o espectador conformado, o agente servil, passivo/defensivo.
A nossa política de ordenamento rendeu-se ao tentacular poder da propriedade e do valor financeiro e potencial especulativo do solo, com isso contribuindo decisivamente para o desbaratar do erário público e para o crescente e irreversível desarranjo do nosso quadro físico de vida”.
(J.J., “Terreno Fértil”, 2004)
Toda a irracionalidade do ordenamento do nosso território assenta na estrutura fundiária, ou mais propriamente: tem a sua raiz na propriedade privada do solo.
Na verdade, o que está na origem do nosso desordenamento urbanístico, da especulação, das negociatas, etc, é o excesso de direitos e a míngua de deveres inerentes à propriedade privada do solo.
Solo que é a matéria prima do ordenamento do território.
Ordenamento esse que é, primordialmente, um objectivo de interesse público.
Interesse público que, por definição, está frequentemente em contradição com o interesse privado.
É isto serôdia dialéctica marxista?
Marxista, sim, será. Serôdia não direi – nem todas as teses marxistas foram historicamente ultrapassadas, algumas até estão aplicadas com sucesso em sociedades que tomamos como modelo a adoptar. Refiro-me aos países nórdicos, onde encontramos territórios arrumados, urbanismo correcto, ausência de especulação, graças a que a apropriação privada do direito de uso do solo para fins de desenvolvimento urbano foi substituída pela apropriação pública.
No que respeita à contradição “interesse público – vs – interesse privado”, penso que, dentro da nossa actual democracia, ainda temos muita margem para evoluir.
Evoluir significa tirar partido da contradição. No meu ponto de vista, tirar partido a favor do interesse público.
Até agora, o interesse privado é que tem tirado o maior partido.
E o resultado é, a todos os títulos, desastroso.
Exterminam-se os privados?
Não. (Marx, ainda vá. Estaline é que não!) O que preconizo é que se fortaleça a administração pública de tal forma que possa aproveitar melhor, no sentido do interesse público, justamente as capacidades realizadoras do sector privado.
Ressalvo que, conceptualmente, estabeleço uma diferença substancial entre “sector privado / vulgo iniciativa privada” e os “interesses privados”.
Nestes últimos é que, geneticamente, se situa a propriedade do solo, é aqui que encontramos a génese das piores manifestações da contradição com o interesse público, manifestações que ocorrem até quando se trata de pequenos interesses privados (vd a ganância que as pessoas manifestam – tantas vezes pateticamente – na corrida à reclassificação dos solos nas revisões dos PDM).
Em todo o caso, penso firmemente – até prova em contrário – que a propriedade privada do solo urbano não é condição indispensável para a existência de um forte sector privado produtor de urbanismo.
E penso, também firmemente, que era para um cenário desse tipo que deveríamos evoluir, isto é: os direitos sobre o uso do solo urbano/urbanizável seriam gradualmente transferidos para o domínio da administração pública, ao sector privado seria concessionado o negócio da materialização do urbanismo, porém essa materialização seria feita nas formas, nos sítios e nos momentos que a administração pública definisse, não em função das regras, interesses, caprichos e modas do mercado imobiliário, mas sim com racionalidade em função das necessidades reais.
Isto até parece que tem os contornos de uma daquelas reformas históricas, à velha maneira.
No entanto, é recorrente ouvir-se: “Legislação, já temos a necessária. E das mais avançadas!... O que é preciso é aplicá-la”.
Isto é: os especialistas das diversas áreas envolvidas estão constantemente a chamar a nossa atenção para mecanismos e instrumentos que estão dispersos pela legislação, “esquecidos”, e que, se fossem activados e coordenados, certamente contribuiriam para se avançar nessa reforma.
Ora isso faz pensar que, nas actuais condições políticas, e existindo já legislação, a reforma da política do solo poderia ir sendo feita sem grande sobressalto.
Pela sua natureza, não é desejável, nem necessário, fazer a reforma toda de uma assentada.
Bastaria começar por fortalecer, e tornar tendencialmente “obrigatória” a sua aplicação, os mecanismos já existentes de municipalização dos solos necessários à expansão urbana. P. ex: aplicação generalizada do direito de preferência pela administração pública, em particular sobre os solos expectantes que ela própria já tenha infraestruturado, com vista à rápida colmatação das descontinuidades, bem como sobre edifícios abandonados ou em ruínas, com vista à sua rápida recuperação.
Ir aplicando limitações crescentes e exigentes ao fraccionamento “matricial/cadastral/notarial” do solo.
Impor alguma moralidade nos circuitos da especulação financeira sobre o valor do solo, designadamente proibindo a utilização como valor de hipoteca, garantia de empréstimos, permuta entre particulares, etc, de terrenos urbanos expectantes, infraestruturados pelo investimento público ou com infra-estruturas a cargo da administração pública.
Agilizar os mecanismos de captação para a administração pública das mais-valias urbanísticas.
E com essas mais valias ir constituindo um fundo público para financiar o investimento em desenvolvimentos urbanísticos racionais (p. ex: constituição de carteiras de solos, qualificação das periferias, recuperação dos centros históricos, colmatação das descontinuidades urbanísticas, etc).
Em suma, iniciar paulatinamente o gradual processo de desvalorização do solo urbano/urbanizável, apontando para que, num prazo de uma ou duas gerações, as pessoas deixem de ter interesse em ser donas de terreno urbano e, ao mesmo tempo, beneficiem dos resultados palpáveis da nova política de solos, traduzidos num quadro urbano de vida ordenado, racional e qualificado.
(Repararam que não mencionei as perequações compensatórias?
É que, no fundo, no fundo, o conceito que lhes está subjacente reconhece, consagra e consolida os direitos inerentes à propriedade privada do solo. Ao propor a fórmula da sua distribuição equitativa, está a render-se a eles. São eles que ditam as regras. São eles que estabelecem e impõem o valor - e é a existência do valor que gera, agudiza e perpetua a contradição entre o interesse privado e o interesse público. Ora, nesta contradição, quem dita as regras é que sai, sempre, a ganhar...
Mas, vamos lá , concedo que, nas actuais condições, poderão ter alguma utilidade. )
Entretanto, para o curto prazo, a actual elaboração dos PROT – Planos Regionais de Ordenamento do Território é, porventura, uma excelente oportunidade e uma óptima instância para assumir e integrar as inúmeras reflexões sobre estas matérias e tomar medidas concretas sobre todos os constrangimentos identificados:
- coordenação efectiva dos conceitos e critérios de ordenamento territorial dos diversos sectores da administração pública;
- regras e acções eficientes para a gestão cadastral dos solos, proibição efectiva do fraccionamento dos solos rústicos;
- mais rigor e exigência contra a dispersão das casas;
- monitorização dos loteamentos sub-ocupados e das respectivas infraestruturas;
- penalização dos solos urbanos expectantes;
- contenção dos investimentos em infra-estruturas urbanas, rentabilização efectiva das imensas infra-estruturas públicas desperdiçadas;
- tabelar o valor do metro quadrado de solo urbano;
- etc.
Pelas especiais condições políticas que nós, os eleitores, lhes outorgámos, seria de esperar do Parlamento, do actual Governo, e do Presidente da República, que aprofundassem a avaliação da política de solos e que, sem contemplações na defesa do interesse público, mexessem no fundo dos problemas do ordenamento do território, na sua racionalização e no aproveitamento real dos seus recursos.
Será isto pregar no deserto? Será que se dão por satisfeitos com a simplexificação dos procedimentos administrativos dos planos, loteamentos, licenciamentos?
NOTA FINAL:
Não sei se são correctos os pressupostos do meu pensamento.
Não tenho a certeza de ter razão nas minhas teses.
Não sei – valha-me Deus! (*) – se tem viabilidade aquilo que proponho.
Preciso conferir.
A Conferência conferirá.
(*) – No início invoquei Marx, agora Deus... De facto, não tenho grandes certezas. A única certeza é que, se um grupo de cidadãos tão vasto e diverso entende necessário fazer uma conferência nacional sobre estas matérias, é porque tudo isto precisa de ser re-equacinado.
Joaquim Jordão, Amarante, Maio de 2007
“(...) eles fizeram guerras e grandes desavenças para disputar territórios, o que muito O desgostou (...) delimitaram fronteiras (...) senhorios e condados (...) divisão administrativa (...) partilhas por herança (...). E, por fim, inventaram o Registo Predial, o que muito O desesperou.”
(Evangelhos Imaginados, Revistos e Anotados – Reforma da Lei dos Solos - Epílogo)
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