“Parábola dos Cegos” ou “Cegos guiando outros Cegos a caminho da cova”, de Pieter Brueghel o velho.
Os títulos dos quadros de Bruegel só surgiram mais tarde, e mudaram mesmo com o passar dos séculos. Por isso, muitas das suas obras têm hoje diversos títulos.
Democracia aos molhos, ai ai, por causa de ti, ai ai, choram os meus olhos
Os Eleitos nas Listas do PCP e do PEV[1] da Moita votaram ontem ao molho e a uma só voz tudo e o seu contrário, julgando estar a seguir a “orientação do Partido”. Tratou-se de uma “gaffe” desastrosa mas inócua na Sessão de 25 de Julho 2008 da Assembleia Municipal. Seria para rir, se não fosse para chorar.
- Os factos
Na Sessão Extraordinária da Assembleia Municipal da Moita (AMM), de 25 de Julho de 2008, o Presidente da AMM mostrou alguma razoabilidade e algum respeito ou receio pela lei, e por isso retirou da votação a parte do seu documento “Proposta de Alterações Pontuais” que implicaria uma aprovação ilegal nesse dia 25 de Julho do Projecto da Câmara Municipal da Moita (CMM) como novo Plano Director Municipal (PDM) da Moita.
Assim contrariou em minutos tudo o que durante dias e semanas os líderes locais do PCP e da CMM vinham apregoando com arrogância, a saber, que o PDM da Moita seria finalmente letra de lei neste 25 de Julho, contra tudo, e contra todos[2].
Com efeito, ao eliminar da deliberação e votação todo o último parágrafo da sua “Proposta” (fls 3 e 4), a mensagem do Presidente da AMM à Assembleia foi clara, e repetidamente explicitada: Não se tratava de aprovar o PDM, mas sim de aprovar 3 modificações (pontos 1, 2 e 3 da Proposta) ao Projecto de PDM, e confirmar assim o recomeço da coisa outra vez a partir do início (comparar com Julho 2005), devendo agora o dito Projecto de PDM calcorrear o périplo seguinte, conforme fica claro da Minuta então igualmente votada :
I. Reenvio hoje do Projecto da AMM para CMM
II. Abertura em data ainda incerta de novo Período de Discussão Pública de 22 dias metade do período em 2005 que foi de 44 dias)
III. Nesse Período de Discussão Pública, apresentação e reclamações orais e por escrito pelos Munícipes e outros particulares
IV. Resposta da CMM às reclamações apresentadas por escrito pelos Munícipes e outros particulares
V. Integração de eventuais novas alterações no texto do Projecto, decorrentes da Discussão Pública
VI. Nova aprovação de mais uma versão final
VII. Reenvio dessa versão final
VIII. Apreciação da CCDR-LVT
IX. Reenvio da CCDR-LVT para a CMM
X. Reenvio da CMM para AMM
XI. Nova Sessão da AMM com eventual deliberação e aprovação ou não em AMM
XII. Ratificação governamental forçada por iniciativa da CCDR-LVT
E se bem o pediu[3], melhor o fizeram de imediato, sem discussão e em uníssono os Membros da AMM eleitos nas Listas do Partido Comunista Português (PCP), e do Partido Ecologista os Verdes (PEV). E por unanimidade.
Assim aprovaram o Projecto com as ditas 3 alterações, com guia de marcha para as voltinhas referidas acima (Estações I a XII).
Acontece que o Munícipe Pedro Garcia, Membro da AMM, insistiu reiteradamente com a Mesa da AMM, relembrando que queria à viva força votar o PDM, aprovar o PDM, que como sabemos, era o que muitos haviam dito que iria ser o “menu” principal da Sessão.
Eis se não quando, o Presidente do órgão, esquecido das suas cautelas iniciais, e sem ser avisado por nenhum dos seus pares, nem pelo Presidente nem pelos Vereadores (PCP) da CMM presentes, nem pelos Assessores da CMM (Arquitectos, Jurista, etc), aceitou finalmente o pedido do Membro da AMM Pedro Garcia.
E vai daí, colocou também à votação a aprovação do PDM.
E se bem o pediu, melhor o fizeram prontamente e em uníssono os Membros da AMM eleitos nas Listas do Partido Comunista Português (PCP), e do Partido Ecologista os Verdes (PEV). E novamente, claro, por unanimidade.
Assim aprovaram o novo PDM, quando minutos antes tinham aprovado o seu reenvio para um novo calvário das 12 estações referidas, e na sua condição evidente, explícita e sublinhada pelo Presidente da AMM de Projecto de PDM.
É isso aquilo a que sói chamar-se aprovar tudo, e o seu contrário. De rajada, sem olhar nem pensar.
É evidente que a segunda aprovação realizada (“a aprovação do PDM”) é absolutamente inócua, é um acto nulo e de efeito nenhum.
Mas é muito revelador de certas características da democracia portuguesa.
Seria mesmo para rir, se não fosse para chorar.
- A aprovação do PDM a 25 de Julho 2008 é um acto nulo e de nenhum efeito
Como se compreende, o facto de a AMM ter aprovado o PDM é pois um acto nulo e de nenhum efeito, que não fica para a história do concelho da Moita.
O que fica para a História, ou para a pequena história apenas, claro, é isso sim o reenvio enquanto Projecto do respectivo texto para o longo processo que ainda se seguirá e que acima se descreve.
Contudo, aquela “aprovação do PDM”, se é verdade que não será recordada com dignidade de facto relevante nenhum, corre o risco sério de garantir lugar cativo contudo a esta Sessão da AMM de 25 de Julho de 2008 no anedotário da democracia de partidos, hiper controlada a partir de cima, com uma proeminência e um poder fantástico das direcções partidárias, ou seja, será lembrada como uma caricatura do estado a que isto chegou, 34 anos passados do 25 de Abril.
- Alguns traços da democracia de partidos, muito mais do que democracia de cidadãos livres e participativos, da situação portuguesa
É um facto por muitos muitas vezes sublinhado que não vivemos propriamente numa democracia de cidadãos livres, informados e com participação cívica autónoma.
Mas que vivemos sim num estado que é democrático, mas onde os Partidos políticos, e mormente as suas Direcções, têm um poder e uma capacidade de intervenção exagerada e absolutamente descomunais.
As razões históricas são evidentes.
Antes de Abril de 1974, os Partidos haviam sido sufocados, proibidos e extintos, à excepção da União Nacional (UN), depois rebaptizada como Acção Nacional Popular (ANP), partido de Salazar e Caetano, e por razões óbvias. Nem sufocado, nem extinto, tampouco foi o Partido Comunista Português (PCP), que lutou e sofreu na clandestinidade, contra a ditadura. Lembram-se? O Partido Socialista, por seu turno, refundou-se
Ora, com o 25 de Abril de 1974, o reverso impôs-se naturalmente. E quem antes havia sido combatido em ditadura, depressa se afirmou e largamente em democracia.
Tão largamente ou tão pouco que o espaço deixado à participação política das Cidadãs e dos Cidadãos, fora ou independentes dos Partidos, ou porventura em dissonância com as direcções dos seus Partidos, ficou muitíssimo reduzida, se não mesmo inviabilizada, salvo em situações muito embrionárias de intervenção cidadã a nível local ou localíssimo.
Claro que a culpa não é sobretudo dos Partidos, que só fizeram o seu papel: uma vez criados, lutaram crescentemente por mais e maior poder em espiral.
A culpa é minha, é porventura de quem lê este escrito, e de muitos outros de nós em Portugal.
Na verdade não soubemos até hoje conciliar a normalidade e a exigência democrática da existência de Partidos fortes, de par com a exigência que deveria ser igualmente natural e absolutamente desejável de tal ser conciliável, e não abafador, com a intervenção cívica e política dos Cidadãos, em todas as circunstâncias.
Tal não deveria ter abafado a possibilidade dos Cidadãos terem também a sua palavra a dizer, quer dentro dos Partidos, quer isolados ou em pequenos ou grandes movimentos cívicos, com um peso necessária e significativamente maior na nossa sociedade.
Mas foi grandemente o que aconteceu.
Só que não é por decreto que se ganha um lugar no céu.
Nem sequer numa democracia forte e participada de Mulheres e Homens livres e senhores dos seus destinos.
Ora, tampouco é o sofá frente à TV, no remanso do lar de cada um, o local ideal para se o conseguir.
E também não surge essa situação mais favorável desgarrada de outras intervenções dos Cidadãos em múltiplas outras áreas, que parece que não são “política”, mas acabam sempre por o ser.
Veja-se por exemplo as participações de Cidadãs e Cidadãos numerosos em organizações não governamentais pequenas, médias ou grandes, de intervenção ambiental, social, cultural, de solidariedade e outras, facto que é de muito fraca expressão em Portugal, e de vastíssima verificação em países como a Noruega, por exemplo.
- O caso Moita, e concretamente o caso dos Eleitos na CMM e na AMM que não são líderes, mas antes liderados
Muito se tem dito e escrito que entre nós, se houver um dia uma Lista de Candidatos apresentada por um Partido, onde por erro ou malandrice se inclua em lugar elegível uma coisa ou um boneco postiço em vez de uma pessoa, sérios riscos correremos de ver essa coisa ou esse boneco eleitos, desde que embrulhados numa camisola com as cores do Partido em causa bem visíveis e as directrizes com o que pensa o Partido bem audíveis.
Quer isto dizer que os Chefes dos Partidos, nas listas dos quais muitas vezes as pessoas foram eleitas, são useiros e vezeiros em estar de olhos grudados muito atentos nos seus Eleitos, no momento de intervirem, na altura de votarem.
E depois, a reprodução social das candidaturas e dos Eleitos é a clássica.
É mil vezes mais jeitoso, interessante e de futuro o Eleito que pouco valha, nada pense e menos diga, desde que abane a cabeça que sim, quando instado a apoiar algo, e diga rodando a cabeça que não, se mandado pelos Chefes do seu Partido a contestar alguma coisa, do que um outro Eleito de futuro incerto que use pensar, ouse discordar, se arroje o direito de inovar.
Cruzes. Esse é logo de eliminar.
Por isso e à cautela, os Eleitos do PCP e do PEV na Moita, e outros seguramente de outras cores noutros lugares[4], não usam discordar do que lhes é apresentado como a “superior orientação do Partido”.
Com uma vantagem.
Quem não faz ondas, ilude-se que com bom vento e melhor sorte sempre há-de chegar à margem no horizonte.
E um risco.
Se lhes colocarem na frente este Mundo e o seu contrário, engolem os 2, sem pestanejar.
E um perigo gravíssimo:
Se lhes embrulharem nas vestes partidárias aquilo contra o qual eles pensam que o Partido sempre lutou, eles nem notam que poderão estar a dizer alegre, estouvada e dramaticamente que sim, no real e no concreto, ao que sempre em consciência se habituaram em teoria a dizer que não.
- O 25 de Julho de 2008 na Moita
Foi isso o que se passou então na AMM de 25 de Julho.
Foi-lhes pedido aos Membros da AMM eleitos nas listas do PCP e do PEV que votassem o PDM na forma de projecto, e assim mais ou menos respeitariam a lei.
E que o votassem logo a seguir na forma de documento final, e assim claramente afrontariam a lei.
Instados a fazê-lo, os Eleitos do PCP e do PEV nem pensaram 2 vezes.
Cerca das 23:58 HH aprovaram o reenvio do Projecto de PDM para ainda ter de calcorrear este Mundo e o outro.
À meia-noite, aprovaram o PDM “tout court”, ou supostamente julgaram fazê-lo[5].
Aprovaram fazer uma viagem, e simultaneamente decidiram ficar parados.
Estranho?
Bizarro.
Oiçam-se as gravações do acto.
Restar-nos-á perguntar:
Quem terá levantado o braço desses Eleitos no momento de votar?
A mola da respectiva consciência, conhecimento e vontade, o seu pensar?
Ou a mímica repetitiva e controlada de uma directriz exterior aos próprios, movida por interesses que não são seguramente os deles, que não pingam seguramente para o seu lado, e que esses Eleitos do PCP e do PEV na AMM, ou pelo menos a maioria de entre eles, não dominam nem de perto nem de longe onde começam, por que razão se movem, por que trilhos sinuosos correm e até onde irão parar?
E ainda:
Terá essa 2ªvotação contribuído para a dignificação do órgão Assembleia Municipal, e para o reforço e clarificação da vida democrática no Concelho da Moita e no País?
Ou foi isso tudo apenas um bom acrescento ao anedotário nacional, à colecção de casos de vida democrática enviesada à força, à pressa e às escuras?
Convenhamos. É caso que dá que pensar.
A cada um de reflectir.
A cada um de ajuizar.
E concluir.
[1] Assembleia Municipal - Composição
Mesa: Presidente - Joaquim Martins Gonçalves (CDU), 1.ª Secretário - Frederico Jorge Bajanca Fatia (CDU) - em regime de substituição, 2.ª Secretária - Susana de Morais Valente Martins da Fonseca (CDU)
Restantes Membros: Maria Helena da Silva Lopes Luis (PS), Heloísa Augusta Baião de Brito Apolónia (CDU), Vicente José Rosado Merendas (CDU), António Fernando Miranda Monteiro (PS), António Augusto Jordão Chora (BE), José Manuel Jesus dos Santos (CDU), Margarida Leonor Nunes Bento Batista (PPD/PSD/CDS-PP), Ana Sofia Soares Faria (PS), Rui Monteiro de Afonseca Cunha (CDU) - em regime de substituição, Diamantino Patarata Cabrita (CDU), Manuel Galvoeira Borges (PS), Pedro Lopes Garcia (CDU), Rui Daniel Amaro Xavier Mourinha (PS), Faustino Tarouca de Almeida Júnior (BE), Andrea da Conceição Martins Plácido (CDU), Serafim Maximiano Machado e Sousa (PPD/PSD/CDS-PP), Manuel Casimiro Madeira (CDU), Maria Isabel Guerreiro Catarino (PS), Maria Teresa Lésico de Jesus (CDU), Luís Miguel Miranda Latas (PS), Cátia Cristina Pereira Tavares (CDU), Hélder Luís Branco Fernandes (CDU), António Ricardo Lourenço Rocha (BE), António Manuel Fernandes da Costa (PS) e os Presidentes da Junta de Freguesia de Alhos Vedros – Fernanda Gaspar (CDU), da Junta de Freguesia da Baixa da Banheira – Fernando Carrasco Valente (CDU), da Junta de Freguesia do Gaio/Rosário – Cristina Campante (CDU), da Junta de Freguesia da Moita – João Faim (CDU), da Junta de Freguesia de Sarilhos Pequenos – Pedro Braziel (PS), da Junta de Freguesia do Vale da Amoreira – Jorge Silva (CDU). De notar que, pelo menos, Heloísa Apolónia (Verdes) e os Presidentes das JF’s de Alhos Vedros, Baixa da Banheira e Vale da Amoreira (salvo erro, de que pediremos desculpa se for o caso) não estiveram presentes numa Sessão que se imaginava importantíssima, tendo-se feito substituir. Terão porventura justas razões.
[2] A aprovação final do PDM da Moita estava de facto agendada para a Sessão da Assembleia Municipal da Moita de sexta-feira 25 Julho 2008, pelas 21:30 horas, onde os Eleitos do PCP na Moita à testa da CMM pretendiam aprovar em definitivo o Projecto de novo PDM, contrariando importantes e continuadas contestações cívicas e políticas, afrontando pareceres jurídicos e políticos de órgãos da Administração Central e anunciando que se furtariam ao controlo de legalidade do Governo, não lhe dando cavaco e não lhe pedindo a ratificação do documento.
[3] Os membros da AMM eleitos nas listas do PS, PSD/CDS e MPT, e BE não participaram nas votações, pois saíram antes, em protesto por irregularidades regimentais que fundamentaram.
[4] Não todos. Para mim que escrevo este texto, o mundo não é todo só branco, nem todo só preto. A palete de cores é muito variada.
[5] Acto administrativo nulo e de nenhum efeito, por violação de múltiplas disposições do artº 133 do Código do Procedimento Administrativo (CPA)
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