domingo, 1 de abril de 2007

Esse conjunto de ameaças é fruto da política de ordenamento do território que temos e de um conjunto inaceitável de omissões e de contradições que ...






Intervenção de José Carlos Guinote, Engenheiro Civil Estruturas pelo IST, Mestre em Planeamento Regional e Urbano pela UTL, no Encontro de 17 de Setembro de 2005, em Grândola, promovido pelo Bloco de Esquerda sobre as ameaças que pairam sobre o Litoral.

José Carlos Guinote foi convidado para esse Encontro, tendo na primeira parte da sua Intervenção analisado a questão das mais-valias.

PARTICIPAÇÃO NO ENCONTRO SOBRE OS LITORAIS PROMOVIDO PELO BLOCO DE ESQUERDA – 1ªparte

Agradeço ao Bloco de Esquerda ter-me convidado para participar neste encontro.

Sendo o convite que me foi endereçado no sentido de eu abordar a situação em Sines e Porto-Côvo não posso deixar de começar por partilhar convosco algumas reflexões de carácter mais geral antes de abordar a questão mais específica do sul do Distrito.

Do meu ponto de vista, independentemente das características de cada um dos “litorais” que se podem identificar no Distrito, existe um conjunto de condições que são a causa profunda que podemos encontrar por detrás de grande parte das ameaças que hoje pairam sobre a generalidade dos territórios que se situam fora dos perímetros urbanos, tal como eles estão definidos nos Planos Directores Municipais dos 305 concelhos do País.

Esse conjunto de ameaças é fruto da política de ordenamento do território que temos e de um conjunto inaceitável de omissões e de contradições que a caracterizam.

Interessa-me pois discutir a questão do litoral no contexto da política de ordenamento do território e do sistema de planeamento urbanístico que permite concretizá-la nesse mesmo território.

Infelizmente esta discussão não é habitual havendo uma espécie de consenso, bastante doentio a meu ver, sobre o carácter benigno da nossa legislação, preferindo a generalidade das pessoas que debatem estas questões centrar a sua atenção nos comportamentos “desviantes” em relação a essa idílica realidade corporizada na legislação.

A nossa sociedade substituiu há muito a discussão sobre as raízes dos problemas por uma outra, em regra muito inconsequente, sobre as consequências desses mesmos problemas.

A análise das omissões e das contradições do nosso sistema de planeamento levar-me-ia o tempo de que o BE não dispõe para me oferecer. Julgo, no entanto, ser possível abordar alguns aspectos importantes para este debate.

Esses aspectos são:

1 – A relação entre o Sistema de Planeamento e a propriedade fundiária;

2 – A questão das mudanças de uso do solo e a regulamentação das construções fora dos perímetros urbanos.

1 – Relação entre o Sistema de Planeamento e a prorpiedade fundiária

Uma das principais contradições do sistema de planeamento tem a ver com o papel desempenhado pelos PDM´s. Estes Planos abrangem todo o território municipal. No entanto incidem a sua atenção apenas sobre os espaços urbanos, tratando o espaço rústico como um simples negativo do espaço urbano. De acordo com dados do Inventário Florestal Nacional de 2001 a área que está integrada na totalidade dos perímetros urbanos é de 3,8 % do território do País. Ora é sobre esses 3,8 % que os Planos directores Municipais incidem a maior parte – para não dizer o exclusivo – da sua atenção tratando a parte restante como um simples negativo do sistema urbano.

Os PDM´s deviam ser os planos orientadores do desenvolvimento do concelho, formulando uma estratégia concelhia que articulasse esse desenvolvimento no contexto regional e nacional. Para isso os PDM´s deviam obter respostas para questões como:

a) Qual a vocação do concelho na sua região e no país?

b) Quais os princípios e critérios seguidos na localização de novas actividades e seus tipos, bem como as transformações e alterações das classes e categorias de uso do solo?

c) Quais as dinâmicas de emprego resultantes da evolução das actividades económicas?

d) Quais as políticas e medidas para o controlo do crescimento de novas áreas residenciais e para a transformação de áreas urbanas existentes?

e) Qual a organização do sistema de transportes?

f) Quais as relações intermunicipais?

g) Quais as relações existentes entre a oferta e a procura no mercado imobiliário, partindo de uma análise do estado e dos comportamentos desse mercado, considerando as dinâmicas de produção de espaços adaptados para as diversas procuras e visando, principalmente aquelas que procuram satisfazer necessidades básicas.

Não é isso que acontece. Na realidade os PDM´s são instrumentos de valorização da propriedade fundiária, com a sua perversa atribuição de índices de edificabilidade. Atribuição essa que não é acompanhada por qualquer reflexão sobre a necessidade de segmentar os usos do solo e de proteger as procuras agrícolas e florestais da procura urbana que suporta cargas fundiárias muito superiores.

Atribuição essa que faz com que os PDM´s sejam instrumentos vinculativos dos particulares quando deviam ser, apenas, instrumentos de orientação da actividade da Administração Pública. Isso equivale a afirmar que a actividade de construção não deveria poder ser realizada unicamente com o recurso aos PDM´s que deviam ser fundamentalmente instrumentos orientadores do desenvolvimento socioeconómico concelhio.

A construção só deveria ser possível na existência de Planos de Urbanização e de Planos de Pormenor, estes sim vinculativos dos particulares.

Esta situação, aparentemente inatingível no nosso Pais, é hoje uma situação corrente em muitos e diferentes países europeus. Diferentes sobretudo no que se refere ao tipo de intervenção do Estado na regulação do desenvolvimento urbano e do ordenamento do território.

Falo da Holanda, cujo sistema passa sobretudo pela municipalização do solo, e da Alemanha cujo sistema permite uma presença fortíssima da Administração no ordenamento do território e no desenvolvimento urbano sem implicar a posse pública do solo. Em ambos os casos há um elemento identificador do tipo de políticas seguidas: a análise feita em sede de PDM´s ao mercado imobiliário e a forma como a Administração trata a magna questão das mais-valias.

No caso holandês a questão não se põe porque a municipalização do solo e o facto de a urbanização ser exclusivamente pública faz com que as mais-valias sejam inteiramente retidas na posse da Administração. Quem conhece a forma como o processo de desenvolvimento urbano se realiza neste país sabe que dentro do uso urbano são satisfeitas todos os tipos de procura; habitação no mercado livre, habitação privada para arrendamento, arrendamento social e habitação para insolventes. E sabe que não existe pressão sobre os solos rústicos por parte do uso urbano e que o sistema protege de forma eficaz o uso agrícola e o uso florestal e os espaços classificados como de parques e reservas.

No caso alemão os solos necessários ao desenvolvimento urbano são adquiridos ao preço do uso existente, isto é quando existe uma mudança de uso passando o solo rústico a solo urbano o proprietário não pode esperar apropriar-se das mais-valias geradas por essa alteração, inteiramente resultantes de uma decisão da Administração.

2 – A questão das mudanças de uso do solo e a regulamentação das contruções fora dos perímetros urbanos.

É essa expectativa de chorudas mais-valias que escapam facilmente a qualquer tipo de tributação que faz com que o nosso sistema seja tão permissivo a todo o tipo de pressões no sentido da mudança do uso dos solos com uma pressão sem paralelo dos usos urbanos, disfarçados de investimentos turísticos ou outros, sobre os solos rústicos, pressões que conduzem a actividade agrícola para o definhamento. Sobretudo aquela que está associada à pequena propriedade periurbana e que é hoje muito mais útil e viável do que a grande exploração agrícola e com funções de ocupação e tratamento do território muito mais relevantes.

Uma primeira questão que é imperativo colocarmos é a seguinte: Como se pode construir fora dos perímetros urbanos, em Portugal?

De acordo com o nosso Sistema de Planeamento o tratamento das pretensões de construção fora dos perímetros urbanos faz-se de acordo com meros critérios quantitativos. As disposições legais que permitem a construção em meio rústico apenas atendem aos seguintes requisitos:

1- Que não sejam violados eventuais regimes non aedificandi ou condicionantes impostas por quaisquer servidões, restrições, ou ainda pela RAN e pela REN, constantes da planta de condicionantes do PDM, quando for esse o caso;

2 – Que o quociente entre a área construída e a área do prédio não exceda os índices de construção preconizados em PDM.

Na prática podemos concluir que as intenções de construção no espaço rústico, como no espaço urbano, são analisadas segundo critérios genéricos, meramente quantitativos.

Esta postura irracional ignora que as necessidades de habitação e de conforto do pequeno proprietário são idênticas ao de qualquer outro proprietário independentemente da dimensão da propriedade, e que os hábitos de vida dos agricultores actuais são referenciados pelo uso urbano. Esta postura tem sido usada, por todo o país, para descriminar as populações de menores recursos e tem constituído um forte incentivo ao abandono das pequenas explorações agrícolas que dão lugar a operações de emparcelamento que não visam os objectivos da doutrina, mas tão somente ganhar escala e poder, para influenciar futuras mudanças de uso. Este tipo de prática tem provocado revolta entre os proprietários e fundamenta muita da animosidade com que parte da população olha para as diferentes expressões da política de conservação da natureza.

A segunda questão é a de sabermos como se faz essa mudança de uso do solo rústico para solo urbano. Quem são os agentes da mudança, que actuavam em primeiro lugar nas zonas periféricas do perímetro urbano e que agora actuam um pouco por todo o lado, mesmo nas zonas classificadas como de parques e reservas? São em primeiro lugar os proprietários rurais da periferia urbana, que muitas vezes não são verdadeiros empresários agrícolas. Esses proprietários esperam apenas pela oportunidade de realizarem mais-valias simples com a mudança de uso do solo. Calculam o valor do solo em função do uso urbano, pelo que não encontrarão compradores para os usos agrícola e florestal. Em segundo lugar são os proprietários intermédios que não exploram a terra e que a adquiriram unicamente na perspectiva de uma futura utilização como solo urbano. Trata-se de entidades para as quais a posse do solo não visa servir de suporte a qualquer actividade mas unicamente prossegue fins especulativos.

Em terceiro lugar os promotores que iniciam a transformação do uso do solo de rústico para urbano. São eles os principais agentes da procura urbana em localizações periféricas que, com a sua acção, influenciam a forma e a estrutura urbana.

No que se refere ao comportamento dos agentes podemos distinguir os agentes catalizadores e os agentes permissivos, Os agentes catalizadores são sobretudo aqueles que mais lucram com a especulação imobiliária e a rápida transformação dos terrenos rústicos em terrenos urbanizáveis. É o caso dos bancos, das grandes empresas imobiliárias, dos fundos de investimento, das seguradoras e instituições dotadas de grande capacidade financeira, como as que intervêm na Península de Setúbal e no Litoral Alentejano. São aqueles que têm poder para condicionar as regras do urbanismo e a forma de actuação dos poderes públicos. O discurso dos vários anos de aprovação dos processos, da morosidade da burocracia, é falacioso, pois esse é um dado de partida. Trata-se do tempo necessário para permitir viabilizar uma operação que só é possível por decisão da Administração e que só tem um beneficiário que é o promotor.

Quanto aos agentes permissivos são sobretudo as autarquias e os governos em particular ministérios como o do ambiente e da economia. É no contexto da actuação dos agentes permissivos das mudanças de uso que são entendíveis dois tipos de actuação diferentes mas complementares:

- Por um lado a actuação dos autarcas abrangidos pelos chamados “investimentos estruturantes”. Tomam a peito a sua função de agentes catalizadores e clamam alto e bom som que o desenvolvimento pode estar em causa. Para eles o desenvolvimento é a cobrança de receitas municipais resultantes das operações imobiliárias.

- Por outro lado a actuação das instituições governamentais que emitem pareceres sobre a utilidade pública de determinados tipos de operações. Outra falácia. Há, de facto, uma utilidade associada a intervenções como as que estão em curso no Distrito de Setúbal. Mas não é pública. É uma utilidade privada para os investidores. Investidores que beneficiam da possibilidade de intervenção em partes do território cujo valor fundiário era residual por força das políticas conservacionistas que sobre ele incidiam e que por força da aprovação da mudança de uso acumulam mais valias de dezenas de milhões de euros. Aliás a conversa à volta do investimento é outra falácia porque não se distingue o investimento público do investimento privado. Ou se fala em criação de postos de trabalho sem esclarecer aspectos essenciais como a qualificação e a duração desses postos de trabalho. Trabalho com direitos ou trabalho sem direitos. Para citar o Bloco.

Ainda recentemente a mediatização de um projecto imobiliário na Herdade da Vargem Fresca, no concelho de Benavente, permitiu identificar todos estes diferentes agentes que tenho vindo a referir.

O agente catalizador neste caso foi o grupo Espírito Santo. A aquisição de uma propriedade agrícola com 510 hectares de área, em 1991, determinou o início do processo de licenciamento de um empreendimento imobiliário-turístico que inclui moradias, um hotel, dois campos de golfe, um centro hípico, uma barragem e um campo de tiro. O único obstáculo à viabilização do empreendimento foi a necessidade de obter autorização para abater 2600 sobreiros. O “agente catalisador” conseguiu em três situações distintas, em 1995, em 1998 e em Fevereiro de 2005, obter declarações de “imprescindível interesse público” para o projecto, ou de “relevante e sustentável interesse para a economia local”. Contou sempre com a colaboração do “agente permissivo”, a Câmara de Benavente que subscreveu a tese da utilidade pública do empreendimento com o argumento “da falta de emprego para os trabalhadores rurais do concelho”. A autarquia nunca fez, na sua argumentação, qualquer referência à receita de Taxas Municipais de Urbanização que irá receber pela emissão do Alvará de Loteamento, entre as razões determinantes do seu apoio.

O Governo neste tipo de processos, em que há necessidade de um despacho ministerial para o processo avançar, actua igualmente como um agente permissivo.

A permissividade alastra aliás por todo o País que a julgar pelo número de processos estruturantes vive um momento de particular exaltação económica e de um progresso imparável.

Em conclusão importa, do meu ponto de vista, falar das coisas importantes e tomar as decisões correctas.

Importa alterar a lei de forma que as mais-valias associadas à mudança de uso sejam retidas na posse da Administração Pública e socializadas;

Importa proteger de forma efectiva a procura agrícola e florestal e garantir uma política de conservação da natureza que se faça com as pessoas e para as pessoas;

Importa proibir a construção fora dos perímetros urbanos com excepção dos usos agrícola e florestal e para a instalação dos equipamentos indispensáveis ao funcionamento do sistema urbano;

Importa melhorar o sistema urbano acabando com a ditadura do monoproduto imobiliário, com o acesso à habitação exclusivamente por aquisição criando o mercado do arrendamento;

Importa ao nível local definir uma estratégia de desenvolvimento local.

Esta questão passa pela criação de um conjunto de condições de que destaco:

- a existência de um conceito de desenvolvimento;

- criar uma cultura de resistência à tirania do curto prazo;

- instituir uma prática de avaliação que se interrogue sobre:

. a razoabilidade dos objectivos;

. o custo da rentabilidade social dos investimentos;

.os ganhos e benefícios, para as populações, dos desenvolvimentos urbanos.

Estas condições deverão traduzir-se em:

- políticas de salvaguarda e valorização dos recursos naturais,

- ter-se presente que o desenvolvimento implica sempre uma relação com a população residente e o território que não impeça um bom nível de vida a essa população;

Por fim refiro que o território é uma coisa – permitam-me a simplificação da linguagem – muito delicada. Deixá-lo à gestão das empresas é um risco elevado cujas consequências futuras somos incapazes de avaliar.

O abandono de uma zona intensamente explorada do ponto de vista da utilização urbanística do solo gera um cenário de catástrofe pior do que algumas catástrofes naturais. Ora as empresas actuam segundo lógicas de rentabilidade dos seus investimentos que não coexistem bem com a diminuição das expectativas sendo irrelevantes considerações de carácter social.

Na fileira do imobiliário há um tempo para semear, há um tempo breve para colher e depois um tempo instantâneo para partir. Ficai a segunda habitação e o autarca permissivo para gastar nos destroços do desenvolvimento aquilo que nunca recebeu.

Recordemos a Torralta e o capitalismo popular de então. As promessas de emprego e de prosperidade. Recordemos o que se passou em Porto-Côvo com centenas de famílias a assistirem ainda hoje impotentes à delapidação de uma vida de economias, consumidas num sonho alentejano com vista para o mar. (...)

José Carlos Guinote

Engenheiro Civil pelo IST

Mestre em Planeamento Regional e Urbano pela UT de Lisboa.

Grândola, 17 de Setembro de 2005.

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