Evocar Duarte Pacheco
A propósito de um texto do Pedro Ornelas no Céu sobre Lisboa acerca da resistência e reaccionarismo que sempre existitu nos lisboetas às mudanças da sua cidade, vem a calhar o livro que comprei ontem na Livraria Municipal alusivo aos 50 anos da morte do Duarte Pacheco.
Assumo a ignorância. Nunca me tinha apercebido da importância, visão e ousadia do homem. Fez mais coisas bem feitas nos quase seis anos que esteve à frente da CML do que muitos dos que se lhe seguiram fariam mesmo que vivessem 500 anos. Deus distribui muito mal a inteligência e talento, e Lisboa tem pago caro por não ter sabido escolher os seu líderes.
O livro é fraquinho, como aliás é assumido logo no início desconcertantemente: "O tempo, extremamente curto, com que nos deparamos para levar a cabo este projecto, não nos permitiu aprofundar devidamente a investigação nem preparar um catálogo bibliográfico existente no GEO (Gabinete de Estudos Olissipenses) sobre Duarte Pacheco." Assim, tal e qual, para a posteridade. É fraquinho, o livro, porque não desenvolve. Resume-se a uma série de fotografias dos vários projectos iniciados por Duarte Pacheco o que mesmo assim vale a pena por nos dar essa ideia de grande capacidade de iniciativa e decisão acertada.
Duarte Pacheco marcou, de forma decisiva, não apenas a imagem da Lisboa do seu tempo mas também a do País. A sua personalidade e o seu espírito empreendedor foram marcados por uma vontade de modernidade, em contradição com as circunstâncias da época em que viveu. Por estranho que pareça se essas mesmas circunstâncias não o deixam florescer em plenitude, também fizeram com que a sua acção, ainda hoje, se sinta nesta cidade de Lisboa.
Foi Ministro das Obras Públicas e Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, chegando a acumular os dois cargos. Foi professor e director do Instituto Superior Técnico, devendo-se à sua acção o grande salto qualitativo da engenharia portuguesa que, felizmente, tem continuado nessa linha de qualidade, inovação e modernidade.
A cidade deve-lhe não apenas o Parque de Monsanto ou o Aeroporto mas uma ideia de cidade cuja expansão, urbanização e arquitectura, entregue a arquitectos prestigiados, assentava numa activa participação do município na definição das regras urbanísticas e no controlo do uso do solo.
A municipalização de solo urbano, feita por si, foi de tal dimensão e importância que ainda hoje se sentem os seus efeitos. Basta comparar o que foi feito, em termos urbanísticos, nos Olivais, já depois da sua morte, pela Câmara Municipal de Lisboa e aquilo que foi, mais tarde a urbanização de iniciativa privada e sem controlo municipal, em Benfica.
Dois exemplos que mostram bem a actualidade dos seus critérios para a organização da expansão urbana, com um claro entendimento de que sem uma efectiva municipalização do solo urbano, é difícil a criação de espaços qualificados onde viver seja algo mais do que morar.
Duarte Pacheco soube reunir à sua volta um núcleo qualificado de grandes artistas, arquitectos e engenheiros que deram forma às muitas iniciativas a que se foi dedicando.
E se a engenharia civil lhe deve muito - o viaduto que tem o seu nome é bem o exemplo da importância de um bom ponto de partida para o grande domínio da engenharia de pontes - a arquitectura teve nele um patrono que permitiu que, na diversidade dos estilos, se exprimissem os grandes arquitectos do seu tempo e que são referências essenciais da arquitectura portuguesa, de Cassiano a Pardal Monteiro e a Keil do Amaral, e deve--lhe o urbanismo uma cidade moderna, voltada ao futuro, de que nem sempre os seus sucessores cuidaram como deviam.
Bastava o Parque de Monsanto para que Duarte Pacheco fosse uma referência obrigatória para quem tem por missão cuidar da cidade com dedicação, amor e disponibilidade permanente. O que resta da sua acção é mais do que isso: é o exemplo de como a modernidade é sempre factor de progresso e de como a qualidade não é incompatível com o viver na cidade.
A Lisboa de hoje é disso exemplo, nas boas e más venturas do urbanismo que tem suportado as suas transformações, crescimento e expansão.
[...]
João Soares
Vereador do Pelouro da Cultura da CML
Mas o que também impressiona no livro é constatar como está diferente e mais gorda a Lisboa dos nossos dias. E é questionável se é para melhor. Sem querer ser reaccionário ou saudosista também, guardo as melhores recordações de Lisboa no tempo da minha infância, ainda nem há três décadas, quando havia um décimo dos automóveis de agora. Realmente, para além dos assassinatos estéticos do Krus Abecassis nas Avenidas Novas e da degradação do edificado e do êxodo da população para a periferia da cidade, a grande transformação, a mais radical, foi a cedência do espaço aos automóveis. Várias decisões erradas que transformaram ruas em autoestradas, roubando aos lisboetas a qualidade de vida que existia. O aumento do parque automóvel reflete o aumento do poder económico, consequência natural e positiva do degelo salazarista, mas a população não soube conter a voracidade da posse e acabou por matar Lisboa. Agora não há rua desocupada, não há vista sem carros, não há artéria principal sem problemas de poluição excessiva.
Será preciso alguém com coragem e inteligência para tomar as difíceis medidas necessárias para que recuperemos a cidade. Duarte Pacheco moreu prematuramente aos 43 anos num trágico acidente de automóvel. Também nestas coisas Deus escolhe mal as suas vítimas.
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