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Editorial
02.02.2008 - 11h16 :, Direcção Editorial
Quando, em Outubro do ano passado, o jornalista do PÚBLICO enviou ao gabinete do primeiro-ministro um conjunto de oito perguntas sobre o seu trabalho como engenheiro técnico, José Sócrates fez chegar, por mail, ao director do jornal uma mensagem que começava da seguinte forma: “Insiste o jornal que V. Exa. dirige em vasculhar o meu passado em constantes e desesperadas tentativas para descobrir qualquer coisa, mínima que seja, que permita atacar-me pessoal e politicamente. É uma forma de estar na política – mais do que uma forma de estar no jornalismo – que já não passa despercebida a ninguém”.Referia-se a seguir a um exercício de “arqueologia jornalística” e acrescentava: “Espero que não deixem em branco as décadas de 60 e 70 que, bem exploradas, e com os critérios em voga, ainda poderão render uma ou duas manchetes…” Só depois respondia a parte das questões colocadas. De então até ontem as outras questões enviadas para o gabinete do primeiro-ministro não obtiveram respostas concretas diferentes das que divulgámos ontem e hoje.
Algumas das expressões utilizadas nessa mensagem foram ontem repetidas pelo primeiro-ministro na sua declaração aos jornalistas, praticamente palavra por palavra. A nossa notícia foi apresentada como sendo, “basicamente, um ataque pessoal e político na senda de outros que o PÚBLICO já fez”. A seguir acrescentou que “todos os projectos que assinei na década de 80, há mais de 25 anos, são da minha autoria e da minha responsabilidade”.
Ora acontece que, mesmo que o primeiro- -ministro o repita muitas vezes, o PÚBLICO não está na política: está no jornalismo. E saber se o titular máximo do poder executivo pautou a sua carreira pessoal e profissional por critérios éticos rigorosos faz parte dos deveres de qualquer jornal numa democracia liberal. O PÚBLICO não decidiu perseguir o primeiro-ministro: decidiu verificar se era ou não verdade aquilo que Abílio Curto, antigo autarca socialista da Câmara da Guarda, dissera numa entrevista à Rádio Altitude, isto é, se José Sócrates, durante a década de 80, enviava muitos processos para essa autarquia, sendo que, e citamos, “nem todos os projectos seriam da autoria dele”.
No nosso entender, apurar esses factos não traduz qualquer esforço de “arqueologia jornalística”. Primeiro, porque fora nessa mesma década de 80 que Sócrates deixou de ser apenas um técnico da Câmara da Covilhã para ascender à liderança do PS no distrito de Castelo Branco, sendo depois eleito pela primeira vez deputado em 1987. Ou seja, o PÚBLICO investigou factos ocorridos numa época em que José Sócrates começou a ter responsabilidades políticas. Depois, porque importava saber se era ou não correcto assinar projectos de que não se havia sido autor. Como ontem escrevíamos, o penalista Manuel Costa Andrade, catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, considerou esse comportamento como “uma fraude à lei, embora sem relevância criminal, mas portadora de uma inquestionável carga ética negativa”.
Finalmente porque entendemos que o facto desse tipo de prática ser habitual em muitos municípios isso não o legitima. Sobretudo quando a nossa investigação apurou que alguns dos proprietários dos edifícios cujos projectos foram assinados por José Sócrates indicavam outros autores que, por serem funcionários da Câmara da Guarda, nunca poderiam assinar os projectos pois interviriam no processo de aprovação.
O que está em causa é uma prática que, contornando a lei, faz com que o técnico que elabora o projecto de construção para um cliente particular é o mesmo que depois, no município, o aprova e o fiscaliza. Esta é uma promiscuidade que o presidente da Associação de Engenheiros Técnicos, Augusto Guedes, relaciona com a fuga ao fisco e com a corrupção, considerando, por isso, que devia ser criminalizada.
Estes factos são suficientemente graves para merecerem ser noticiados. Sobre estes factos foram feitas perguntas concretas ao gabinete do primeiro-ministro a que este respondeu de forma genérica. O PÚBLICO editou os testemunhos que recolheu e o desmentido geral do primeiro-ministro, cumprindo todas as regras do bom jornalismo.
O entendimento que o PÚBLICO tem dos seus deveres jornalísticos é o mesmo que tem sido repetidamente adoptado em sentenças do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: o controlo público das figuras públicas é central na vida política em liberdade. De resto foi também esse o entendimento do nosso Ministério Público quando decidiu arquivar a queixa que o primeiro-ministro fez contra o autor do blogue “Do Portugal Profundo” a propósito do que este publicara sobre as condições em que José Sócrates completou a sua licenciatura.
Escreveu a 10 de Dezembro de 2007 a procuradora-geral adjunta Cândida Almeida: “Quem desempenha funções de órgão de soberania sujeita-se a ver a sua actividade profissional eou institucional sindicada pelos cidadãos”. Poderíamos multiplicar os exemplos de políticos, e até de altos-funcionários, que noutras democracias tiveram de se explicar sobre factos ocorridos décadas antes.
E que foram chamados a explicarem-se não por esses factos configurarem um crime – algo de que nunca o PÚBLICO acusou José Sócrates –, mas sim por terem tido comportamentos eticamente questionáveis. Da mesma forma que um jornalismo incómodo para o poder não faz dos jornalistas políticos, nem tudo o que a lei não criminaliza é ético. Ora, numa democracia e em liberdade, os cidadãos, e os jornalistas, têm o direito de questionar os comportamentos éticos, não apenas de saber se esses comportamentos caem ou não sob alçada da lei. Tal como não estamos na política, também não fazemos parte da máquina judicial.
P.S. Ontem, ao minuto 18 do seu Jornal da Tarde, a RTP abria com a seguinte frase a sua peça sobre o nosso trabalho: “A nova ofensiva do jornal PÚBLICO apresenta-se como uma investigação jornalística a partir de declarações de um antigo presidente da Câmara da Guarda...” Não foi solicitado a qualquer membro da direcção do PÚBLICO que se pronunciasse sobre esta acusação. Será este o bom jornalismo que Sócrates defende?
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