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PÚBLICO consultou aleatoriamente 1000 processos na Câmara da Guarda
31.01.2008 - 23h25 -José António Cerejo
José Sócrates assinou numerosos projectos de edifícios na Guarda, ao longo da década de 80, cuja autoria os donos das obras garantem não ser dele. Nalguns casos, esses documentos eram manuscritos com a letra de Fernando Caldeira, um colega de curso do actual primeiro-ministro que era funcionário do município e que, por isso, não podia assumir a autoria de projectos na área do concelho.O primeiro-ministro diz que assume “a autoria e a responsabilidade de todos os projectos” que assinou e que a sua actividade profissional privada se desenvolveu “sempre nos termos da lei”. Embora se trate de uma prática sem relevância criminal, as chamadas “assinaturas de favor” em projectos de engenharia e arquitectura constituem uma “fraude à lei”, no entendimento do penalista Manuel Costa Andrade, e são unanimemente condenadas pelas organizações profissionais dos engenheiros técnicos e dos engenheiros.
A actividade privada do actual primeiro-ministro como projectista de edifícios era publicamente desconhecida até que, em Junho do ano passado, um antigo presidente da Câmara da Guarda, o também socialista Abílio Curto, a ela se referiu numa entrevista. “Uma vez disse-lhe [a José Sócrates] que ele mandava muitos projectos para a Câmara da Guarda, obras públicas, particulares. (...) O que sei é que nem todos os projectos seriam da autoria dele. Mas isso levar-nos-ia muito longe e também não vale a pena”, afirmou o ex-autarca à Rádio Altitude, pouco depois de ter terminado o cumprimento de uma pena de prisão por corrupção passiva.
Obra quase desconhecida
Ausente dos seus currículos, o trabalho de Sócrates como projectista é muito pouco conhecido. Mesmo os seus amigos da Guarda ignoram se essa actividade se estendia a outros concelhos. Questionado pelo PÚBLICO, Sócrates confirmou que exerceu “funções privadas” desde 1980, mas nada adiantou quanto ao número, natureza e localização das obras que projectou.
O arquivo camarário da Guarda mostra, porém, que essa actividade, no caso daquele município, teve algum relevo. O PÚBLICO consultou aleatoriamente mil processos de licenciamento de obras particulares de entre os cerca de 4000 submetidos à autarquia entre 1981-1990. E só nessa amostra de um quarto da totalidade dos processos encontrou 27 com a assinatura de José Sócrates. No essencial, trata-se de casas de emigrantes, ampliações e anexos mas também dois edifício de habitação colectiva.
Destacam-se os processos em que o primeiro-ministro, então engenheiro técnico ao serviço da vizinha Câmara da Covilhã, assina – quase sempre com reconhecimento notarial – peças manuscritas, nomeadamente memórias descritivas, termos de responsabilidade e cálculos de betão, em que a caligrafia usada nada tem a ver com a de José Sócrates. Muitas vezes, essa caligrafia, inconfundível, é a mesma que aparece nos autos das vistorias realizadas no fim das obras pelos técnicos da Câmara da Guarda: a letra de Fernando Caldeira, colega de curso do primeiro-ministro e que, por ser funcionário do município, estava legalmente impedido de subscrever projectos na área do concelho.
Noutros casos, os trabalhos manuscritos apresentam uma caligrafia que não corresponde nem à de Sócrates nem à de Caldeira, e alguns deles aparecem dactilografados. Comum a muitos dos projectos assinados pelo técnico da Covilhã, que em 1986 se tornou líder distrital do PS em Castelo Branco, é o facto de serem rapidamente aprovados, apesar dos reparos e observações críticas dos arquitectos da repartição técnica da Câmara da Guarda e até dos pareceres contrários da administração central.
Coincidente em muitos deles é também o facto de os donos dessas obras garantirem que José Sócrates não é o autor dos projectos das suas casas. Dos 13 proprietários que o PÚBLICO conseguiu localizar – muitos dos outros residem no estrangeiro e alguns já faleceram –, apenas um, António Lourenço Fresta, confirmou que foi com ele que “tratou do assunto”.
“Só o conheço da televisão”
Alguns, como Aníbal Beirão, um empresário de Porto da Carne, não só negam que Sócrates tenha tido alguma intervenção nas suas obras, como identificam claramente quem o fez. “Tratei de tudo com o eng. Caldeira e foi a ele que paguei. Agora quem assinou não sei”, diz.
Outros, entre os quais António Caldeira, também empresário na mesma aldeia e irmão do engenheiro Fernando Caldeira, desmentem a ligação do primeiro-ministro às suas obras e apontam para autores mais ou menos incertos: “Isto não tem nada a ver com o Sócrates”, garante António Caldeira. No entanto, o projecto da sua fábrica de blocos de cimento, construída no interior de uma zona urbana, foi assinado em 1990 pelo deputado socialista que então mais se destacava na defesa do Ambiente. Segundo o empresário, o autor foi um conhecido arquitecto da Guarda. Sucede que nessa época este ainda nem sequer tinha concluído o curso.
Já o ex-emigrante José Pereira Ramos não hesita em identificar Cristóvão Pereira, um desenhador da câmara local, como autor do projecto da sua casa. “Foi a ele que paguei. Ao Sócrates só o conheço da televisão.”
Entre alguns engenheiros e arquitectos da Guarda, que pedem anonimato, a versão que corre sobre a ligação profissional de Sócrates à Guarda é simples e é assim resumida por um deles: “Havia aí um grupo de técnicos da câmara que açambarcava uma boa parte dos projectos de casas dos emigrantes. Como não podiam assinar punham o Sócrates a fazê-lo, porque ele era da Covilhã e não tinha esse problema” de impedimento legal.
De acordo com esta versão, o grupo era composto por Fernando Caldeira, António Patrício e Joaquim Valente, todos engenheiros técnicos e antigos colegas de José Sócrates no Instituto Superior de Engenharia de Coimbra. O primeiro e o segundo são hoje directores de departamento na Câmara da Guarda e o último, que apenas foi técnico da autarquia em 1980 e 1981, tendo depois desenvolvido a sua actividade em duas empresas que criou, tornou-se presidente da mesma Câmara em 2005. Dos três, só António Patrício nega que alguma vez tenha tido relações profissionais com Sócrates. Os outros admitem ter trabalhado com ele, mas sempre “para ajudar pessoas a resolver os seus problemas”.
(mais textos sobre este tema no PÚBLICO de amanhã)
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Entre finais de 1988 e o final de 1991
01.02.2008 - 23h12 - José António Cerejo
O ex-deputado José Sócrates recebeu indevidamente um subsídio de exclusividade da Assembleia da República, entre finais de 1988 e princípios de 1992, por acumular as suas funções parlamentares com a actividade profissional de engenheiro técnico, enquanto projectista e como responsável pelo alvará de uma empresa de construção civil. Sócrates nega que tal tenha acontecido, mas diversos documentos por ele assinados confirmam a violação do regime legal de dedicação exclusiva.Declarando “sob compromisso de honra” que “exerceu as funções de deputado em regime de exclusividade” entre Outubro de 1988 e o final de 1991, o então porta-voz do PS para a área do Ambiente requereu ao presidente da Assembleia da República que lhe fosse pago, relativamente àquele período, um subsídio mensal para despesas de representação reservado aos deputados em dedicação exclusiva. O pedido foi feito em Fevereiro de 1992 porque o processamento do abono em causa, correspondente a 10 por cento do vencimento (100 euros, vinte mil escudos à época), tinha estado congelado desde a publicação da lei que o criou, em Agosto de 1988, devido à existência de dúvidas sobre o conceito de dedicação exclusiva.
Ultrapassado este impasse em Janeiro de 1992, graças a um parecer da Procuradoria-Geral da República que fazia equivaler a exclusividade à impossibilidade legal de desempenho de “qualquer actividade profissional” – sem falar em actividade remunerada –, José Sócrates e muitos outros deputados requereram o pagamento rectroactivo do subsídio desde Outubro de 1988.
No caso do actual primeiro-ministro, os serviços da assembleia chamaram-lhe a atenção, logo após a entrega do requerimento, para o facto de a sua declaração de IRS mostrar que tinha exercido a actividade de engenheiro técnico em 1989, situação que contrariava a declaração feita no requerimento. O deputado informou então, por escrito, que “a verba de 95 000$00”, constante da sua declaração de IRS, se referia a “um projecto executado no mês de Março de 1989” – informação que aliás não coincide com a que agora deu ao PÚBLICO sobre o mesmo assunto (ver outro texto).
Perante este esclarecimento, o presidente da Assembleia autorizou que fosse pago a José Sócrates o subsídio respeitante aos períodos entre 15 de Outubro de 1988 e o fim de Fevereiro de 1989 e 1 de Abril de 1989 e 31 de Dezembro de 1991. De fora ficou, portanto, o mês de Março de 1989, o único, de acordo com as declarações entregues pelo deputado, em que exerceu a sua actividade privada entre Outubro de 1988 e o final de 1991 – o que também não confere com as suas respostas ao PÚBLICO.
Em Abril de 1992, porém, José Sócrates assinou um documento relacionado com a revalidação do alvará de uma firma de construção civil da Covilhã, entretanto falida, que mostra uma realidade diferente. “Em 30/07/80 fiz um contrato verbal em regime de profissão livre a tempo parcial com a firma Sebastião dos Santos Goulão, na qual exerço as funções de consultor técnico”, afirma o deputado nesse documento. A acreditar nesta declaração, Sócrates exerceu a sua actividade profissional em todo o período relativamente ao qual declarou a dedicação exclusiva e recebeu indevidamente o subsídio correspondente. Para esclarecer melhor o alcance daquela afirmação, o PÚBLICO pediu a José Sócrates que explicitasse o seu sentido, tendo-lhe sido respondido (em Dezembro) que não havia mais comentários a fazer.
Por outro lado, uma declaração subscrita por ele próprio em 13 de Abril de 1992 vai ainda mais longe: “(...) declaro por minha honra (...) que pertenço ao quadro técnico da firma Sebastião dos Santos Goulão, Industrial de Construção Civil, na qual exerço as funções que competem à minha profissão por forma efectiva e permanente (...).” Nesta altura, já no decurso da VI Legislatura, José Sócrates, mediante um novo requerimento, já estava a receber, desde Janeiro de 1992, o subsídio de exclusividade que manteve até ao fim do mandato, em 1995.
As relações profissionais de Sócrates com aquela firma não foram, no entanto, além de Abril de 1992, na medida em que a Comissão de Alvarás de Empresas de Obras Públicas e Particulares (actual Instituto da Construção e do Imobiliário) recusou o nome do então deputado como responsável pelo renovação do alvará da empresa (garante da sua capacidade técnica), por não ter sido junto ao processo o respectivo certificado de habilitações ou a carteira profissional de engenheiro técnico civil.
Mas para lá da sua ligação a esta empresa em violação do regime de dedicação exclusiva, José Sócrates manteve no mesmo período a sua actividade profissional como projectista de edifícios. Numa pesquisa que ficou longe de ser exaustiva (ver edição de ontem), o PÚBLICO encontrou nos arquivos da Câmara da Guarda diversos documentos por ele assinados em 1989 e 1990 e relativos aos projectos de quatro edifícios.
Um desses projectos prende-se com um prédio de três pisos que começou a ser construído em 1989 na Rua da Ferrinha, na Guarda, com projecto de José Sócrates e sob a sua responsabilidade técnica. O proprietário, Elpídeo Gomes, garante, todavia, que nunca lhe encomendou nenhum serviço. Dois outros referem-se a obras, feitas em 1989 e 1990, da empresa Joaquim Caldeira & Filhos, em Porto da Carne. O último tem a ver com uma moradia mandada fazer na Guarda, em 1990, por Manuel dos Santos Miguel. Os donos destas três últimas obras disseram igualmente ao PÚBLICO que desconhecem qualquer ligação do então deputado aos seus projectos.
Nas respostas que enviou ao PÚBLICO o primeiro-ministro diz, contudo, que depois de ser eleito deputado, no final de 1987, a sua actividade privada se tornou “muito residual” e se resumiu a projectos feitos “a pedido de amigos, sem remuneração”.
Relativamente às funções desempenhadas por José Sócrates na empresa Sebastião dos Santos Goulão verifica-se uma outra situação delicada, na medida em que o então responsável pelo alvará da firma foi simultaneamente técnico da Câmara da Covilhã entre 1980 e 1987, até ser eleito deputado. Embora a legislação da época seja pouco clara quanto às incompatibilidades dos consultores técnicos que são funcionários das autarquias, o princípio geral seguido desde antes do 25 de Abril é o de que estes não podem ter responsabilidades nas empresas de construção civil sediadas no concelho em cuja câmara trabalham. Tanto mais que o estatuto disciplinar dos funcionários públicos sempre contemplou o dever de isenção e imparcialidade, o qual é susceptível de ser posto em causa quando há acumulação de funções privadas e públicas daquele género.
No caso de José Sócrates o eventual conflito de interesses nunca foi suscitado pelos seus superiores. Mas o PÚBLICO encontrou no arquivo municipal da Covilhã processos de obras feitas pela firma de cujo alvará ele era responsável em que as vistorias camarárias eram feitas por ele próprio e mais dois colegas.
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