OPINIÃO | Publicado 18 Janeiro 2008 |
Baptista Bastos b.bastos@netcabo.ptDemocracia de opinião e folclore |
O historiador e jornalista Jacques Julliard publicou, em “Le Nouvel Observateur” [3-9. Janeiro, p.p.], um extracto do seu recente ensaio “La Reine du Monde.” Segundo o semanário, trata-se de uma “interrogação sobre a ascensão inelutável da democracia de opinião.” O texto, pela sua importância, merece ser ponderado, pelo que reflecte do mal-estar das sociedades actuais, e do bloqueio ideológico e prático a que parece terem chegado as forças de Esquerda.
O alucinante acréscimo dos meios de expressão, Imprensa, Rádio, Televisão, Internet, ultrapassa, largamente, “o modelo de representação única, omnisciente, omnicompetente, omnipresente, que é a figura de proa do sistema representativo. Na época de oiro, o representante do povo possuía todas as virtudes, e exprimia a opinião na diversidade, e o povo na totalidade. Como legislador, pronunciava-se acerca de tudo. Hoje, uma tal ficção é impensável. Os próprios eleitos do povo o reconhecem e multiplicam as comissões ad hoc, as juntas de sábios, as consultadorias de especialistas. Numa palavra: multiplicaram-se as fontes de legitimidade”, escreve Julliard, acrescentando: “A opinião é, antes de tudo, o espectáculo que a sociedade dá a si mesma; é a identidade de que ela toma consciência para chegar, progressivamente, ao domínio de si própria. Uma sociedade que se quer adulta não pode contar com os grandes homens para forjar uma imagem e um destino.”
Os perigos decorrentes desta “democracia da imagem” resultam nas “democracias administrativas” tornadas comuns na Europa. É o mimetismo da ideologia norte-americana, cuja democracia, esvaziada pela alternância de poder, apenas entre “republicanos” e “democratas”, existe no poder do dinheiro e na força quase imparável da televisão. As fortunas gastas nas campanhas presidenciais nos EUA são escandalosas. Os imensos e secretíssimos potentados económicos regem e impõem as coisas públicas. O mesmo sucede na Europa. A mascarada das democracias estão à margem da realidade circundante. Depois, o que acontece é que os partidos deixam de se distinguir uns dos outros, porque mais não são do que expressões, já não dissimuladas, das oligarquias.
A ideia e os conceitos que formaram, aprofundaram e, por vezes, melhoraram os ideais republicanos estão a ser dizimados, sobretudo por aqueles que dizem defender esses mesmos ideais. O capitalismo mais selvagem e mais hediondo tomou conta e distorceu os padrões e as balizas morais e éticas, fundadores das grandes doutrinas humanistas. Conscientemente, que resta? Nem a Direita o sabe. O espectáculo fornecido por Sarkozy não é menos deprimente do que as deprimentes atitudes da Direita portuguesa. Notoriamente, há uma pesada culpa dos meios comunicantes. A “ressurreição” de Santana Lopes é disso exemplo. Ele só existe porque existem televisões comuns na imbecilidade e semelhantes na ausência de crítica. O mesmo é aplicável à Imprensa e à Rádio. Da nódoa ninguém sai imaculado. E a democracia sai ferida, irremediavelmente?, da junção de leviandades e de frivolidades desta netureza.
Jacques Julliard: “O tempo escasseia, porque a hegemonia actual da democracia apenas repousa na ausência momentânea de adversário.” O sinistro projecto do PS e do PSD de aniquilamento dos pequenos partidos, através de uma indissimulada estratégia de poder dividido entre os dois “dominantes”, comporta algo de totalitarismo. E o facto de os “comentadores” pertencerem, quase exclusivamente, ao mesmo clube ideológico, impede qualquer espécie de antagonismo doutrinal. As ideias e a correspondente ideologia de uma espécie de elite são impostas com subtileza mas com módica inteligência.
De novo Julliard a insistir que esta nova “moral”, sobretudo a das televisões, tem por objectivo inculcar normas. “Consiste, antes de tudo e sobretudo, numa apologia do dinheiro e de todos os meios imagináveis para o ganhar. A seguir, é uma obsidiante glorificação da violência, da lei do mais forte e do menos escrupuloso. Sob a capa do divertimento, a televisão exalta, a todo o instante, através dos seus heróis, os valores do capitalismo selvagem, o que se não confessa mas que permanentemente se pratica.”
A “democracia do mercado” tem servido de pretexto para todas as aventuras da ganância, do lucro pelo lucro, da exploração desenfreada. Os turiferários da desumanização encontram-se em todos os campos da actividade. Porém, os que mais interessam ao poder económico, já sobreposto, largamente, ao poder político, são aqueles que dispõem de acesso aos órgãos de comunicação social. Já o referi, nesta coluna: a inexistência de debate, a uniformização do pensamento, o sentido único da ideologia vão conduzir, inevitavelmente, ao esvaziamento democrático. O desprezo que os cidadãos não escondem acerca dos “políticos”, é o eloquente testemunho da gravidade do problema.
O desinteresse dos “políticos” em cumprir as promessas corresponde, por igual, ao desprendimento, cada vez mais acentuado, dos cidadãos pelos fenómenos públicos. O recente caso do BCP e das manigâncias do Governo, apostado em dividir, pataca a mim, pataca a ti, o festim da mesa posta, é alarmante. Depois, as origens são brumosas e ninguém parece interessado em aclará-las. O ruído e a futilidade opõem-se, com denodo, ao esclarecimento. Fica-nos o folclore.
APOSTILA – É evidente que o ministro Mário Lino sai muito arranhado do assunto Ota-- Alcochete. Precipitou-se no “jamais”; mas seguiu instruções, é bom de ver. Independentemente de eu apreciar, ou não, a prática deste Executivo (e, na realidade, não aprecio), a mudança de opinião não entra nos domínios da sordidez. No entanto, a reviravolta de José Sócrates carece de explicações mais claras. Quanto aos interesses, eles habitam nos dois (ou nos três) projectos. E é aqui que está o busílis. E é aqui que a “democracia de opinião” falhou, porque se estatelou na informação. Fica-nos, de novo, o folclore.
ADIVINHA – Qual é o semanário, qual é, que não publicou uma resenha a um livro de conhecido preopinante, pelo simples motivo de o autor da crítica (neste caso autora) fazer sérias reservas ao texto? Critérios editoriais? Favorecimento? Para uns, sarrafo; para outros, borracha ou lápis azul. Para os amigalhaços, conforto e acalanto; para os outros, os rigores dos paradigmas. Não há duas maneiras de amar a liberdade e a livre opinião. Há é modos de a mascarar.
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